Crítica

Este é um filme feito por mim, sobre mim. Talvez eu não devesse ter feito um filme assim. Mas, enfim, está feito”. Essa é uma das primeiras frases proferidas por Manoel de Oliveira enquanto narra os créditos iniciais de Visita ou Memórias e Confissões, um trabalho rodado em 1982 e, a pedido do próprio cineasta, lançado apenas após a sua morte (ainda que tenha tido uma exibição excepcional realizada em 1993, na Cinemateca Portuguesa). Trata-se, portanto, de uma obra extremamente pessoal, um verdadeiro filme-testamento, no qual o realizador português aborda sua carreira, seu passado familiar e, especialmente, duas de suas maiores paixões: a casa onde viveu por mais de 40 anos e sua esposa, Maria Isabel de Oliveira, a quem o filme é dedicado. 01-visita-ou-memorias-e-confissoes-papo-de-cinema

Realizando uma mistura entre documentário e ficção, Manoel de Oliveira apresenta duas linhas narrativas distintas e que eventualmente se cruzam. A primeira acompanha um casal, cujos rostos nunca são revelados, que, ao visitar a casa de conhecidos, encontra o local vazio e de portas abertas. Os dois resolvem entrar e esperar pelos donos do local, fazendo um tour pelo antigo casarão e divagando sobre a vida de seus moradores. Através dos diálogos do casal, de autoria da escritora Agustina Bessa-Luís, o diretor convida o espectador a participar de um exercício de criação, imaginando o cotidiano e a personalidade dos moradores, bem como as histórias passadas naquela residência.

Mesclada a esses momentos de reflexão sobre família, o significado de um lar, o tempo, e outros assuntos, temos a segunda linha narrativa, na qual o cineasta aparece para contar a verdadeira história do local e a importância que teve em sua vida, servindo como espaço para a criação de boa parte de seus filmes e também onde, por mais de quatro décadas, viveu momentos alegres e conturbados ao lado de seus familiares. Oliveira, uma figura profundamente simpática, fala diretamente ao público, expondo sua vida de maneira sempre sincera e bem-humorada. A cena em que titubeia levemente para se lembrar dos nomes de todos os filhos, netos, noras e genros, enquanto mostra as fotos dos mesmos, é um exemplo perfeito dessa franqueza com que o mestre português dialoga com o público.

De maneira bastante meticulosa, Oliveira filma cada detalhe da casa, que já não mais lhe pertence, como se fosse um local quase sagrado. A beleza das imagens captadas pela câmera, que transita com leveza pelos espaços da construção da década de 40, faz com que o espectador compartilhe deste sentimento de devoção, tornando os depoimentos do cineasta ainda mais emotivos. Além de apresentar verbalmente a história de sua vida, desde a trajetória do pai – um importante industrial – até a venda da casa devido a uma dívida, Oliveira também exibe antigos filmes caseiros de sua infância, assumindo um papel de projecionista. O cinema, obviamente, ocupa grande parte da memória do diretor, que relata particularidades de seu processo criativo e também das dificuldades enfrentadas em sua carreira.
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Quando cita nomes como Camões e Fernando Pessoa, e lembra que, mesmo sendo um país pequeno, Portugal sempre teve momentos de aspirações grandiosas ao longo da história, Oliveira acaba traçando um paralelo com o ato de fazer cinema em sua terra natal. Assim como os grandes navegadores, Oliveira também se mostrou um desbravador – da linguagem cinematográfica, no caso – e levou sua arte a todos os cantos do mundo. Essa alegoria sobre as navegações se completa quando o casal que passeia pela casa nos lembra que o local possuiu detalhes arquitetônicos que remetem a um navio. E no momento em que aparece no único estúdio de cinema português – ao menos na época – Oliveira reforça como sua dedicação à arte é capaz de superar qualquer obstáculo.

Entre estes obstáculos esteve também a política, com o cineasta chegando a ser preso durante a ditadura militar salazarista, devido a problemas com a censura gerados por um diálogo de seu curta A Caça (1964). “Considero-me um homem político. Não no sentido partidário, mas no sentido histórico”, afirma Oliveira. Mas é mesmo sobre a emoção que trata Visita ou Memórias e Confissões, e nenhum momento é mais emocionante do que aquele em que Oliveira registra a esposa cuidando de suas flores e comentando sobre como é ser casada com um grande artista. A cumplicidade, o companheirismo e o amor transmitidos por essa cena impressionam pela aparente simplicidade. Essa característica fascinante que foi a marca principal da obra do diretor, que continuou a se dedicar ao cinema até sua morte, aos 106 anos.
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No plano final do filme, ao cair da noite, a voz feminina afirma não conseguir mais enxergar a magnólia no topo da árvore da entrada da casa, mas afirma também estar feliz, simplesmente por saber que a flor existe. Uma frase que reflete o sentimento de todos os cinéfilos, que mesmo tristes pela perda de Oliveira, sentem-se felizes por saber que sua obra existe e ainda pode ser apreciada.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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