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Sinopse

Popular e habilidoso suposto vidente de Paris, Ramsés se depara com uma gangue de crianças que abala os seu negócio. Ao encontrar o cadáver de um menino, ele mergulha ainda mais nas profundezas da marginalidade.

Crítica

Visões de Ramsés nos apresenta um panorama áspero do bairro parisiense de Goutte d'Or. Nele, sobressai a noção concreta de um mundo feito de sobreviventes, no qual cada um faz o que pode. A trama se passa nesse ambiente efervescente e multicultural lotado de imigrantes sempre empurrados à miserabilidade. Com isso, o cineasta Clément Cogitore desenha um microcosmo que reflete a crise migratória na Europa, transitando do homem que ganha dinheiro manipulando a expectativa dos outros de contatar os mortos, passando por pivetes indomáveis e pela revendedora de mercadorias roubadas, até chegar a uma espécie de conselho de anciãos. O protagonista é Ramsés (Karim Leklou), cujo nome faraônico sugere conexão entre o cotidiano e o mítico. A forma que ele encontra para prevalecer nessa área em que todos são obrigados a pensar no presente em primeiro lugar (o que comer, o que vestir, onde dormir HOJE) é mantendo um negócio baseado no charlatanismo. Ramsés tem um esquema para ludibriar carentes em busca de conexão com entes queridos que se foram. Mas, não há nada de sagrado na suposta reconexão que ele faz, pois tudo não passa do resultado de uma encenação bem feita. Seus comparsas coletam informações dos clientes e Ramsés, como bom ilusionista e ator, representa minuciosamente o papel do guru franciscano com seu “acesso privilegiado ao além”.

Ramsés tem o cuidado de parecer humilde (pressuposto de seu “dom divino”) até ao atender os clientes com uma surrada camiseta do time de futebol argentino Boca Juniors. Ele não faz o tipo guru extravagante, pelo contrário, pois, em virtude dessa simplicidade calculada, se mistura ao ambiente e não chama atenção. Clément Cogitore mostra em detalhes como funciona o esquema de enganação que conta com diversos cúmplices e até o auxílio tecnológico de um ponto eletrônico às exibições de Ramsés na sala lotada de gente. A ideia é justamente enfatizar o aspecto palpável da operação, retirando dela qualquer indício de um improvável misticismo real. É como se o cineasta nos convidasse a experimentar o ceticismo, por meio do desmonte do discurso messiânico de alguém que reivindica publicamente a dádiva de conversar com mortos e intermediar seus contatos com os vivos. Tendo em vista os passos seguintes do filme, exatamente no sentido de questionar a certeza antes estabelecida, podemos compreender esse movimento inicial do longa-metragem como uma armadilha. Nela os naturalmente descrentes vão encontrar espaços de afirmação de sua descrença, enquanto os crentes serão diretamente provocados. Mas, tudo muda abruptamente quando Ramsés encontra o cadáver de um menino. Clément não prepara essa transição essencial, nos propondo repentinamente outra dimensão.

Ao ser questionado pelos demais líderes dos negócios da região sobre a sua gana egoísta por clientes, Ramsés simplesmente dá de ombros. Ainda que o “guru” esteja num ambiente repleto de hostilidade, há regras pautando as coisas por ali. Tanto que, em determinado momento de Visões de Ramsés, ele próprio discute com homens que estariam roubando o seu território. Portanto, percebemos que existem leis e condutas não escritas regendo aquele cenário caótico aparentemente desamparado pelos tentáculos regulatórios do Estado. Clément Cogitore faz um diagnóstico social muito interessante no primeiro terço desse longa-metragem caracterizado visualmente por uma nervosa e propositiva câmera na mão. E, depois do citado movimento de mudança, ele começa a relativizar acontecimentos, colocando em xeque até a falta de dom do protagonista. De fato, Ramsés merece reconhecimento pela habilidade como charlatão, vide a citada opção eficiente por um registro sóbrio e menos excêntrico para construir o personagem do vidente. Sua atuação é caracterizada pela mansidão de uma voz baixa. Já a espera para ser atendido é outro atributo de mise-en-scène que valoriza o truque. No entanto, o contato com o cadáver do menino que tinha o roubado há pouco lança o filme num terreno fundamentalmente mais pantanoso. Como ele encontrou o garoto? Seu amuleto o chamou ou foi o desencarnado?

Uma das sacadas mais certeiras de Visões de Ramsés, essa sugestão geradora da dúvida não é espalhafatosa. O comentário social não se perde em meio aos questionamentos sobre uma possível conexão real do protagonista com o além-vida. No entanto, os elos de Ramsés passam a ser naturalmente dúbios depois disso. A começar pela relação com o pai, sujeito que pode ser percebido como portador de problemas mentais ou profeta delirante. Da mesma forma, o elo do "charlatão com os pivetes que não respeitam nenhuma lei ou protocolo local pode ser apreendida, ao menos, de duas formas: 1) como união entre insuspeitos semelhantes, por conta da orfandade e da origem estrangeira; 2) enquanto reunião orquestrada por forças superiores entre ovelhas desgarradas e um pastor em meio ao processo de se descobrir como liderança de verdade. A ambiguidade que marca o último terço do filme francês é reforçada a cada instante, mas nunca resulta na substituição da dureza inicial pelo extraordinário. Não se trata de uma ou outra, mas das duas instâncias se retroalimentando. Clément Cogitore é habilidoso ao borrar essas fronteiras sutilmente, às vezes numa cena aparentemente simples, como na revelação de que gêmeos fazem a segurança local. O diálogo entre eles pressupõe o revezamento que cria a ilusão (novamente ela) de um vigia atuante 24 horas, mas deixa margem a um estranhamento que insinua mistérios. Verdades e mentiras. Natural e sobrenatural. Tudo junto e misturado.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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