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Sinopse

Em Vitória, uma senhora solitária (Fernanda Montenegro), aflita com a violência que passa a tomar conta da sua vizinhança, começa a filmar da janela de seu apartamento o cotidiano complexo. A idosa registra a movimentação de traficantes de drogas da região durante meses, com a intenção de cooperar com o trabalho da polícia. A atitude consegue chamar a atenção de um jornalista.

Crítica

Dificilmente um longa como Vitória será percebido por seu público pelo que ele de fato é, e não pelas circunstâncias e condições nas quais se deu sua estreia. Afinal, o Brasil atravessa por um momento de euforia cinematográfica graças à conquista do Oscar de Melhor Filme Internacional por Ainda Estou Aqui (2024) e à indicação ao prêmio da Academia de Hollywood – assim como a premiação no Globo de Ouro – da estrela Fernanda Torres. Como é público e notório, Torres é filha de Fernanda Montenegro, e se hoje desfruta de toda essa atenção, muito em parte se deve ao fato da própria mãe ter trilhado esse caminho primeiro, há mais de duas décadas. Portanto, ir ao cinema para conferir um título estrelado por outro nome forte da mesma família, se mostra uma tarefa quase obrigatória. Mas a obra dirigida por Andrucha Waddington – não por acaso, marido de uma e genro da outra – merece, de fato, toda essa expectativa? Sim e não, e certamente por outros além dos motivos óbvios.

Enquanto realização cinematográfica, Vitória se revela tímido, aproximando-se de um didatismo convencional quase televisivo, restrito a um desenrolar tradicional dos acontecimentos, com poucas reviravoltas (ou quase nenhuma, para sermos exatos) e uma narrativa por demais linear, atenta aos fatos supostamente verídicos ao invés de uma eventual liberdade criativa. Não são poucos os que afirmam que, se a vida real não possui compromisso com a verossimilhança (basta, para tanto, enumerar as tantas coincidências absurdas que podem se suceder a qualquer indivíduo), a ficção, por sua vez, não pode abrir mão dessa preocupação, devendo, necessariamente, se ater ao crível e ao lógico. Pois bem, tanto Waddington, quanto a roteirista Paula Fiuza (diretora do documentário Sobral: O Homem Que Não Tinha Preço, 2013), parecem mais voltados à fácil alegação de que “bom, foi assim que aconteceu”, e em versão resumida, diante de qualquer incongruência apresentada pela trama.

Pois bem, para começo de conversa, o próprio título já é um spoiler. Afinal, a protagonista se chama Nina (Montenegro, em desempenho hipnotizante, demonstrando profundo entendimento de sua personagem, por mais que essa seja algumas décadas mais jovem do que a atriz), uma senhora que mora sozinha em um pequeno apartamento em uma das regiões mais ingratas do Rio de Janeiro: à beira de um morro tomado por favelas e comunidades. O cotidiano dela e de seus vizinhos é tomado por tiroteios nas redondezas, pelo tráfico de drogas, pela violência generalizada. Ter que se esconder embaixo da cama ou no chão da sala assim que o barulho das armas interrompe o silêncio da noite se tornou prática comum. Porém, reclamar às autoridades não parece ter efeito, uma vez que há a suspeita de que até mesmo essas estariam corrompidas pelos marginais da região.

É quando Nina decide agir por conta própria. Não exatamente como uma justiceira, mas também não muito distante disso. Afinal, este é um filme que aponta para a falência do estado, ao mesmo tempo em que coloca a solução dos problemas sociais nas mãos do indivíduo, num legítimo “cada um por si”. Tanto é que após registrar da janela de sua casa as tantas contravenções que ocorrem sem dissimulações diante dos olhos de todos, Nina só consegue ser ouvida em seus protestos quando um jornalista – ou o “quarto poder”, conceito esse que vem da Inglaterra do século XIX e já foi até mesmo nome de filme dirigido pelo sempre político Costa-Gavras – passa a usar o material por ela recolhido em uma investigação particular. As denúncias, enfim, vem à tona. A mudança começa a acontecer. E a mulher que deu origem a esse movimento passa a ser alvo dos bandidos, que querem vingança. Por isso, precisa desaparecer. É quando Nina, portanto, se torna Vitória.

Qualquer país que se dê ao luxo de produzir cinema estrelado por uma atriz nonagenária em pleno domínio do seu ofício e em grande lançamento comercial deveria privilegiar esse feito como um acontecimento ímpar. O Brasil – e o brasileiro – deveria assistir à Vitória quase como no cumprimento de um dever cívico, prestigiando uma de suas maiores atrizes em um exercício que muito lhe exigiu, resultando em uma entrega à altura do compromisso. A câmera de Waddington se mostra embevecida por sua protagonista, e é ela quem comanda mais de 90% das cenas. Porém, ao mesmo tempo que por um lado há esse chamado, também se faz preciso uma ciência a respeito dos deslizes narrativos cometidos, das fragilidades de composição – os diálogos por demais expositivos, as facilidades estruturais, a falta de um clímax envolvente, as resoluções por demais simplistas – e também do uso de recursos que, se por um lado se mostram afeitos a um discurso urgente, por outro devem se mostrar esvaziados com o passar do tempo. Eis, enfim, um conto-denúncia, para o aqui e agora. Tanto Fernanda Montenegro, quanto a própria Vitória, mereciam mais.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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