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Sinopse

Um casal de pequenos golpistas é desmascarado e sequestrado por um excêntrico milionário, que mantém a mulher em cativeiro e abandona o homem, em um retrato de alguns dos mais poderosos impulsos do nosso tempo: a falta de sentido da vida e a ideia de que o status quo moral pode ser superado. Mas as forças do consenso social respondem fortemente e ninguém sairá ileso dessa experiência.

Crítica

Lucía (Magaly Solier) e Alberto (Oscar Ludeña) planejam um roubo rápido dentro de um apartamento de luxo. A intenção é apenas pegar a máquina fotográfica anunciada num jornal pelo morador, entregar o pagamento em notas falsas e sair sem roubar mais nada. No entanto, eis que Lucía decide furtar algumas joias, curiosamente dispostas na mesa de centro, em frente ao morador. Este, por sua vez, percebe as notas falsas e dispara um soco que passa longe de Alberto, apesar de os efeitos sonoros sugerirem que o homem foi golpeado com força. Lucía e Oscar acordam com o corpo amarrado e a boca vendada. Ao telefone, o morador, com olhar perverso e voz sedutora, fala ao telefone: “Podem vir. Temos aqui uma boa candidata”.

Caso Viver Ilesos se leve a sério - hipótese provável -, ele resulta num projeto de aparência lamentavelmente amadora. A direção de fotografia cria imagens escuras, sem contraste nem volume em relação aos cenários – nem mesmo em cenas externas. Os planos de conjunto, em enquadramento fixos, com os personagens posicionados no centro do quadro e atores fazendo cara de vilões, parecem saídos de alguma telenovela. O tratamento de som, ora de aparência dublada, ora marcado pelo eco dos cômodos vazios, transparece os problemas de captação. Somadas às consequências diretas do roubo frustrado – o milionário perverso retém a mulher em sua casa, como escrava sexual, e abandona o namorado dela num lixão, para ser assaltado (devorado?) por mendigos – estas escolhas se traduzem numa mistura de drama e suspense sem o mínimo cuidado com as imagens e a condução narrativa.

Caso o projeto se assuma enquanto paródia de gênero, ou seja, uma comédia social sobre a luta de classes e as diferenças de gênero – hipótese defensável, ainda que pouco evidente – ostenta falhas igualmente graves. Primeiro, não há elementos assumidamente cômicos na direção, nem na condução dos atores (quem sabe caracterização de Solier, que aparenta vestir uma peruca) nem no uso dos espaços e nos saltos temporais (a escrava logo se habitua à mansão onde vive, Alberto sonha em encontrar sua amada sem efetuar qualquer investigação). A disparidade entre ricos e pobres, entre homens poderosos e mulheres submissas, se acentua de maneira grosseira, ainda que o projeto evite espelhar estes dois para finalidade paródica. Em outras palavras, havia espaço para o filme brincar com suas deficiências, transformando-se em fábula ou farsa, porém o diretor Manuel Siles conduz a trama como se dissesse algo muito importante sobre o estado do mundo.

Do alto de seus estranhamentos, o projeto nunca desenvolve qualquer personagem em tela. Por que Lucía e Alberto decidiram efetuar o roubo? Como era a vida deles antes disso? De onde vem o dinheiro do sequestrador milionário, e de modo oculta a presença de escravas sexuais em sua casa? A narrativa sabota sua própria premissa: as mulheres cativas são realmente submissas e não planejam mais partir, o homem sequestrado desiste de buscar pela namorada, o vilão comemora cada acesso de fúria de sua nova vítima: “Isso sim é uma mulher!”. Ao mesmo tempo, o rapaz abandonado aos mendigos reclama de sua invisibilidade na cidade, e do desprezo da polícia com os pobres, numa denúncia social tão pertinente aos dias de hoje quanto deslocada do resto da trama, convenientemente apolítica. Entre o realismo e o arquétipo, os atores ficam perdidos em suas composições: a experiente Magaly Solier cria uma mulher explosiva, apenas para domesticá-la rumo à conclusão sem motivo aparente, enquanto Ludeña propõe a figura intermediária entre o “loser” sonhador, à americana, e o homem conformado com sua própria miséria.

A subversão dos códigos do suspense poderia gerar boa identificação com o público, enquanto o mergulho no ponto de vista das vítimas acentuaria a tensão. Ora, Viver Ilesos nunca sabe ao certo quem seguir – se acompanha o olhar de Lucía, de Alberto, do milionário, ou apenas acompanha a todos de modo onisciente. Deste modo, o desfecho não evita a frustração: os personagens, transitando por um  contexto social genérico, são despidos de seus dilemas, mas de que adianta a transformação se nenhum deles parecia incomodado com o cativeiro e a miséria? Em menos de oitenta minutos de duração, o projeto se arrasta, acena para gêneros que não explora, e para caminhos que não aprofunda. Os arquétipos em tela – os ricos e os pobres, os algozes e as vítimas – não sofrem quaisquer transformações ao longo do processo, permanecendo tão superficiais quanto os enquadramentos e as luzes destinados a representá-los. Falta muito para que o trio represente, como sugere a sinopse oficial, “a falta de sentido no mundo”.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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