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Sinopse

Joe, um veterano de guerra traumatizado, ganha a vida sendo matador de aluguel. Quando um trabalho fica fora de controle, seus pesadelos o alcançam. Ao mesmo tempo, uma conspiração é descoberta, o levando a uma viagem que pode ser para a sua morte ou para seu despertar.

Crítica

O paralelo entre Você Nunca Esteve Realmente Aqui e Táxi Driver (1976) é óbvio por alguns motivos. Os protagonistas de ambos os filmes são norte-americanos que passaram experiências traumáticas como soldados. Fraturados psicologicamente, decidem empreender uma cruzada para salvaguardar a integridade física de menores de idade usadas como joguete sexual por adultos inescrupulosos. A cineasta Lynne Ramsay vai buscar elementos, também, em Psicose (1962), ora fazendo seus personagens citarem o clássico de Alfred Hitchcock, ora investindo numa alusiva relação entre o protagonista e a sua mãe. Portanto, estamos diante de um longa-metragem que canibaliza vários componentes, não se fazendo de rogado ao explicitar esse procedimento, permitindo-se a isso abertamente. Joe (Joaquin Phoenix) é um matador de aluguel afamado pela brutalidade com a qual executa seus trabalhos. Sujeito ensimesmado, ele negocia a vida das pessoas condenadas como se lavasse o chão da cozinha, ou seja, corriqueiramente.

Marcado pela excepcional interpretação de Phoenix, Você Nunca Esteve Realmente Aqui se ancora num protagonista que pouco revela diretamente ao espectador, permanecendo enigmático no mais das vezes. A realizadora trabalha a violência alternando implícito e explícito, privilegiando o primeiro, detendo-se em fragmentos que se referem à crueldade. Mas, o filme demora a decolar, ficando demasiadamente aferrado ao desenho reiterado da personalidade de Joe, à recorrência de planos estilizados que visam mostrar Joe, essencialmente, como alguém perigoso. As sempre bem-vindas lacunas, bem como a ausência de uma dinâmica meramente expositiva, são entendidas aqui quase como fetiche, não instrumentalizadas apenas para criar áreas nebulosas e, assim, adensar a instabilidade. O artifício, então, passa a ter importância prevalente à do efeito que deveria gerar, com a trama empacada por conta dessa opção narrativa. Há uma veia puramente exibicionista, beirando o artificial.

A partir de determinado ponto, mais precisamente do meio em diante, Você Nunca Esteve Realmente Aqui ensaia ganhar pungência, essencialmente porque Lynne Ramsay permite a breve quebra do fluxo dominante. Joe recebe a missão de resgatar a filha de um político, que provavelmente virou escrava sexual. As expectativas são subvertidas por um lance esperto do roteiro que ameaça instaurar uma carga distinta e forte de tensão. Porém, tão logo seja possível, o filme retorna ao seu itinerário delimitado pela introspecção do protagonista, pelos fantasmas que ele não consegue exorcizar. Flashes do passado dão ideia de como foi sua tumultuada infância, fazendo sentido na condição de apêndice. Há procedimentos repetidos, como o saco na cabeça que sufoca menino e adulto. Aliás, Joe flerta constantemente com a morte, brinca com navalhas, ameaça a integridade do próprio corpo, colocando-se a serviço de missões intricadas justamente pelo considerável e permanente impulso de autodestruição.

Todavia, Lynne Ramsay não trabalha devidamente essa característica, acreditando na suficiência dos exemplos de flagelo para dar conta da complexidade de uma psique altamente fraturada. Há frouxidão em boa parte das esferas do filme, embora sua roupagem seja bonita e elegante. O grande trunfo aqui é Joaquin Phoenix, que cria boas possibilidades a partir do minimalismo ao qual a cineasta o limita intencionalmente. Com poucos elementos, ele consegue criar um personagem denso, infelizmente combalido pela saturação de uma linguagem que, ao contrário da economia dramatúrgica, faz da autocomiseração e do sofrimento do protagonista um espetáculo visualmente belo, mas carente de potência em frequentes momentos. Sobressai a sensação de que Ramsay não sabe ao certo se investe na crueza, na animalidade das reações do homem ao meio que lhe inspira o pior, ou se faz algo formoso de ser visto, com planos elaborados e trilha funcional – mas anêmico enquanto thriller.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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