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Sinopse

Sanja trabalha em um estaleiro. Quando o lugar vai à falência e ela fica sem emprego, a mulher se sente perdida em uma cidade repleta de barcos cobertos por lonas. Uma tempestade chega, e uma vida se vai. Em uma noite, tudo pode mudar.

Crítica

Pessoas dormem dentro de um barco. Não vemos o rosto de nenhuma delas, apenas os corpos abandonados em colchões improvisados. À distância, uma mulher com crachá de funcionária vigia o sono alheio. Depois, arruma o quarto ocupado por passageiros que nunca vemos. Ela conversa com outra camareira, que em seguida desaparece das imagens. Existe uma sensação de abandono e de tristeza que permeia o filme inteiro, da primeira à última imagem. O jovem diretor Ivan Salatic trabalha com planos fixos nos quais os personagens silenciosos convivem com uma cidade que os ignora, uma natureza deserta, ou com navios repletos de anônimos.

Um dos principais méritos de Você Tem a Noite é a capacidade de explorar o seu tema por um viés puramente estético. Para abordar a crise econômica em cidades portuárias, afetando a vida das famílias ao redor, o cineasta aposta em luzes baixíssimas, captadas com extraordinária riqueza de composição pelo diretor de fotografia Ivan Markovic. Cada cena escura possui uma infinidade de objetos, cores, texturas e volumes à disposição do nosso olhar, num único plano. Visto que os personagens conversam muito pouco, as informações sobre a crise são fornecidas por narradores em off (de televisões e rádios), enunciado o fim de uma atividade econômica. Os protagonistas, vítimas diretas, escutam estes decretos em silêncio, enquanto desfrutam de um café da manhã modesto ou observam o jardim.

Cada enquadramento é minuciosamente concebido pelo diretor, assim como o precioso espaço fora de quadro. Para abordar ausências, Salatic faz questão de ocultar do espectador os fatos centrais, revelando o que ocorre antes e depois dos traumas. Ou seja, ao invés de filmar uma demissão, revela Sanja (Ivana Vukovic) trabalhando, e depois sem trabalho. Ao invés de apresentar um afogamento, o personagem é visto vestindo trajes de mergulho, e depois sendo resgatado pelo serviço de urgência. Por retirar da tela o choque, o filme evita o sentimento de espetáculo, a manipulação emocional, enquanto mantém a proposta firmemente construída sobre tempos mortos e pontos de suspensão. Caberá ao espectador imaginar a mordida de um cachorro quando vemos um braço se movendo em direção ao cão, e em seguida sendo enfaixado pelos médicos. O uso de elipses é bastante instigante, porque compreensível sem o conflito central.

Deste modo, Você Tem a Noite constitui um filme metonímico, para o qual a narrativa se constrói microscopicamente, ao invés da apresentação formal dos roteiros tradicionais. O diretor começa a unir diversos personagens fantasmáticos aos poucos, explicando de que maneira estão relacionados, o que pensam um do outro. A atenção do espectador é sempre solicitada neste projeto cujos sentidos não estão dificultados, apenas diluídos pela proposta etérea do diretor. O espectador sequer tem direito ao título, revelado na cena final, ou ao nome de diversos personagens. Nada que pode ser deduzido pelos enquadramentos é repetido pelas imagens, e nada que um enquadramento possa traduzir por conta própria será explicado pelo roteiro. Menos do que expor uma situação, Salatic constrói uma atmosfera destinada a representá-la. O desaparecimento de uma atividade econômica implica no desaparecimento direto das famílias que dependem dela, e cujos laços também se desfazem, aos poucos, nos cortes da montagem e nos fragmentos dos planos.

A sensação de lento desaparecimento culmina com a própria metáfora do navio, descrita pelo título. Se o início é marcado pela chegada da embarcação na cidade, a conclusão segue o caminho inverso, revelando a partida do navio – e a despedida deste modo de vida, por extensão – enquanto resta ao espectador, e aos moradores, a vista da cidade noturna, vazia, sem sons, com luzes de casas distantes. “Eu não tenho nada, e você tem a noite”, explica um personagem mais velho ao jovem trabalhador dos barcos. Resta, de fato, apenas a noite, o silêncio, mesmo na ousada inserção de imagens de arquivo sem som referente, introduzidas de modo brusco pelo cineasta.

Salatic coincide, neste momento, os fantasmas de um tempo passado – a imagem enquanto registro de algo que se perde, uma maneira de fixar o tempo e mumificar o objeto filmado – e os fantasmas do presente, da solidão. Você Tem a Noite dialoga portanto com o tempo do cinema e os tempos da História, o registro documental e o registro fictício, a imagem enquanto apreensão e enquanto representação metafórica de seu tema. O projeto impressiona tanto pela beleza deslumbrante das imagens quanto pelo gesto conceitual – algo particularmente raro no trabalho de um diretor estreante em longas-metragens.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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