Crítica
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Sinopse
As irmãs Alayr e Sabrina ouvem um julgamento que pode mudar os rumos da história do Brasil. Junta-se a elas ao redor do rádio de pilhas Fátima, a irmã regressa do mundo dos mortos.
Crítica
Imagine duas pessoas que se conhecem bem: uma mãe e uma filha, por exemplo. A primeira afirma à segunda: “Eu te carreguei na minha barriga, dei à luz a você, cuidei de você”. A filha responde: “Você me deu comida, brigou comigo quando me comportei mal”. A mãe replica: “Eu te contava histórias”. O diálogo soa estranho: porque estão compartilhando informações de que ambas já sabem? Existe uma artificialidade extrema neste recurso explicativo, quando transposto aos roteiros de cinema. Ora, Voltei! (2021) depende quase inteiramente no princípio do “eu sei, você também sabe”. Os diretores Ary Rosa e Glenda Nicácio apostam não apenas na conversa como único motor narrativo (as três personagens se sentam à mesa da cozinha, da primeira à última cena), mas também neste tipo específico de conversa visando informar o espectador. Os encontros entre familiares, discorrendo sobre sentimentos ou memórias soariam mais justificáveis do que a mera verbalização de dados. “Eu cantava o poema para você dormir”, informa uma irmã à outra, que ainda se lembrava deste episódio. “Mainha tinha o quê mesmo?”, pergunta em seguida, para que se expliquem os transtornos mentais da mãe. “Quando a gente era criança, a vida era dureza”. Você jura?
O roteiro propõe uma dinâmica inerte. Os criadores evitam reviravoltas para além da chegada da terceira irmã, que se estimava morta até então. Poucos minutos depois, a situação se normalizou e o trio volta à mesa, com cervejas na mão, relembrando a infância. Por um lado, é divertido escutar as personagens desbocadas falando sobre sexo anal, mandando uma à outra tomar no cu, cantando músicas infantis de apelo sexual. Por outro lado, isso é basicamente tudo o que o projeto tem a oferecer em termos de naturalidade e despojamento. De resto, a montagem segue um esquema acadêmico de planos e contraplanos, propondo cortes muito ruins para os pequenos gestos em andamento (uma mão que ergue o copo, por exemplo). Com o pretexto de um cenário sem energia elétrica, a direção de fotografia se contenta com uma lamparina sobre a mesa, conferindo pouquíssima atenção aos objetos ou ao cenário, com os quais o trio interage pouco. As três personagens se comunicam da mesma maneira, através de ritmo, piadas e provocações semelhantes – sequer existe uma construção de personalidade distinta entre elas.
Curiosamente, nem esta disposição transparece ambição criativa particular entre os trabalhos da dupla. A direção replica a estrutura de Até o Fim (2020), também exibido na Mostra de Tiradentes: personagens femininas fortes e desbocadas à mesa, tomando cerveja, revirando segredos familiares até a chegada de uma terceira, inesperada, proporcionando atritos. Em relação ao filme anterior, os cineastas acalmam a câmera frenética, optando por um estilo mais estável, pelo menos até o terço final. No entanto, reproduzem a dependência de diálogos mal trabalhados. Quando as atrizes erram seus textos, elas se corrigem ao longo do plano, num cinema de tamanho descaso com a forma que beira o amadorismo. Os criadores depositam sobre o caráter lúdico a responsabilidade pelo andamento arrastado, encarregando as personagens de verbalizarem tudo o que Rosa e Nicácio pretendem dizer: estamos vivendo um “governo do disparate”, adorador da ditadura militar, nostálgico dos anos de chumbo, e conservador nas pautas morais. Os termos “ditadura”, “moral”, “chumbo” são escritos numa lousa escura, caso ainda não estejam claros.
A crônica política possui alcance reduzido pela obviedade de seus alvos e pela ausência de debate. As irmãs aguardam na rádio um julgamento importante a respeito do péssimo presidente em atividade, enquanto escutam os votos dos juízes do Supremo, de sobrenomes Castello Branco, Costa e Silva, Maluf, Figueiredo, Ustra. As mulheres reclamam de “vírus, desemprego, perseguição”, enquanto disparam considerações retóricas do tipo “Olha a situação desse país! É um sofrimento só!”. Elas lamentam o autoritarismo, a desigualdade de renda, o descaso dos governantes. Estamos no Brasil de 2030, porém o lapso de nove-dez anos jamais justifica o contexto futurista. No final, durante os letreiros, descobrimos que a sentença em questão visava a prisão perpétua, argumento controverso demais para ser disparado enquanto nota de rodapé. No fim, o encontro se pauta pela falta de relevo político (as irmãs concordam em tudo), de hipótese sobre as origens deste processo, e de alternativas para sair do mesmo – o impeachment seria garantia de renovação política?
O projeto aposta numa metáfora evidente do governo Bolsonaro, porém sem explorar a universalidade de uma fábula mais ampla. Perdem-se inúmeras oportunidades neste encontro de pensamentos idênticos, precisando aguardar um deus ex machina (o julgamento, a volta da energia elétrica) para trazer um desfecho simbólico. Compreende-se que Rosa e Nicácio busquem a concretização de um cinema político e popular – sem dúvida, Até o Fim trouxe uma das sessões mais calorosas, repletas de risos e palmas, durante a 23ª edição de Tiradentes. No entanto, os artistas não podem se limitar à constatação da miséria do atual governo militar-evangélico: o discurso de que “tudo está uma droga” tende ao conformismo, e por consequência, ao reacionarismo de quem ignora a possibilidade de mudanças. Então por que lutar, certo? Voltei! repete a fórmula simplíssima do filme anterior, sem desenvolvê-la, nem explorar o cenário único, o huis clos, a distopia, a ficção científica de baixo orçamento (vide o que Adirley Queirós e André Novais Oliveira já fizeram dentro do gênero). Resta a repetição engraçada e verborrágica de que o Brasil vai muito mal. Concordamos. Agora, espera-se alguma proposta imagética, metafórica, discursiva, poética capaz de levar adiante a percepção do óbvio.
Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021.
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