Crítica
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Sinopse
Alguns dias da rotina de um casal idoso que lida com a degeneração da saúde mental da mulher. Enquanto o estado dela vai se agravando, as tarefas cotidianas se transformam em verdadeiros desafios muitas vezes angustiantes.
Crítica
O cineasta franco-argentino Gaspar Noé é reconhecido por seu cinema agressivo, cáustico e mergulhado na sordidez humana para extrair dela as suas manifestações mais abjetas. De modo semelhante, o austríaco Michael Haneke é um criador célebre pelo interesse na obscuridade, nas raízes das naturezas pontiagudas e destrutivas das pessoas. Portanto, é curioso que ambos, em momentos distintos de suas carreiras, tenham proposto meditações áridas sobre a finitude. Haneke colheu elogios por Amor (2012), no qual um casal era destroçado pela doença degenerativa da mulher que, aos poucos, perde a sua subjetividade para a enfermidade. Em Vortex, Noé parte mais ou menos da mesma premissa, sendo ainda mais cru. Depois de resgatar Françoise Hardy entoando nos anos 1960 a canção Mon Amie la Rose – a letra que fala da morte das flores é de um romantismo mórbido/desconcertante enquanto introdução –, o cineasta mostra Ele (Dario Argento) e Ela (Françoise Lebrun) fazendo uma convidativa refeição na sacada do apartamento confortável do casal. Logo depois, o plano zenital (de cima para baixo) que registra o sono de ambos é literalmente cortado ao meio. A partir daí, Gaspar Noé radicaliza a utilização da tela dividida, denominada no jargão cinematográfico de split-screen. Esse gesto narrativo arrojado aos padrões atuais promove uma ruptura visual que, paradoxalmente, unifica Ele e Ela.
Então, o que temos em Vortex é exacerbação da simultaneidade. Numa narrativa mais convencional, Ele e Ela poderiam ter respiros extracampo (fora do quadro), ou seja, serem preservados da bisbilhotice da câmera, sobretudo quando o outro remoesse solitariamente suas questões pessoais diante do dispositivo. Como aqui ambos são protagonistas (e vistos) ao mesmo tempo, também se tornam quase obrigados à onipresença. Quando o personagem vivido sensivelmente pelo cineasta Dario Argento se refugia no escritório para conversar com a amante mantida há anos, enxergamos ao lado a protagonista interpretada com maestria pela também cineasta Françoise Lebrun. E ela está perdida em pensamentos embaralhados pela doença. Os planos dentro do plano se comunicam em vários níveis. E um dos efeitos desse diálogo é a asfixia que pode ser encarada por alguns espectadores como algo beirando o insuportável. Noé nos obriga a cumprir praticamente todas etapas da via crucis ao lado de seus personagens. Pode-se dizer que ele nos priva dos descansos. Diante de uma situação dramática, como quando um parente está hospitalizado, são essenciais as escapadas do ambiente dramático para recuperar o fôlego. Sem isso nos resta o calvário. E aqui ele acontece num clima pesaroso.
Gaspar Noé carrega a fama de ser um realizador sem qualquer compromisso com o conforto do espectador. Sob esse aspecto, teria um estilo distante das estéticas comercialmente mais aceitas. Ele frequentemente quer nos manter fora do prumo, às vezes flertando com o mau gosto. É um artista que cria constantemente nas bordas do suportável. Numa primeira sacada, Vortex pode ser encarado como um passo mais maduro em virtude da sua sobriedade, pois a brutalidade não é escancarada graficamente. Estamos supostamente distantes do homem que dirigiu Sozinho Contra Todos (1998), uma vertiginosa, barroca e agressiva descida ao inferno da podridão humana. Porém, não é bem assim. Desta vez, os métodos talvez sejam realmente estranhos aos habitualmente apresentados na obra de Noé. No entanto, seu mais novo longa é coerente com a premissa autoral de provocar o espectador por meio de situações que o deixem num terreno desconfortável. A parcimônia vista no desenvolvimento da trama, a desafetação dos enquadramentos, a evidente empatia pelos personagens que sofrem por sua condição mortal diante dos nossos olhos sem arroubos e rompantes, tudo isso pode gerar uma ideia falsa sobre um Gaspar Noé menos iconoclasta e corrosivo. Na verdade, se trata apenas de outra roupagem ao franco interesse do fraco-argentino por aquilo que nos define como seres condenados.
Outra semelhança clara entre Vortex e Amor é a presença do filho testemunhando a derrocada dos pais. Nesse caso, Stéphane (Alex Lutz) tem o próprio quinhão de dramas pessoais – dependente químico, levado a criar o filho pequeno sozinho por conta da internação da ex-esposa, emocionalmente frágil, etc. E Gaspar Noé inclui habilmente esse terceiro elemento como um sintoma de família. A doença degenerativa da mãe não é o único agente desestabilizador. Há a saúde debilitada do pai, as dificuldades do filho, a criança inquieta (a cena dele batendo carrinhos enquanto os adultos conversam é enervante) e até os problemas da ex, mencionados de relance como agravantes do panorama. Noé reivindica com insistência que olhemos atentamente, apostando na radicalização da simultaneidade para não termos áreas de escape e/ou zonas de conforto. O personagem de Argento escreve um livro sobre a interseção entre cinema e sonho enquanto represa o desespero diante da inevitabilidade da morte (dele e dela). A de Françoise Lebrun é fisicamente incapaz de se agarrar aos fantasmas das memórias, logo representando de maneira direta a submissão do ânimo (no sentido vinculado ao conceito de alma) aos aspectos físicos fadados à obsolescência. Desse modo, pode-se dizer que o filme é uma observação rigorosa da materialidade (o corpo) rumando ao fim, acontecimento natural que prevalece impiedosamente sobre as tantas imaterialidades (amor, memória, espiritualidade) que atravessam a nossa vida.
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