Crítica
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Sinopse
Crítica
À primeira vista, este filme de terror se assemelha a centenas de produções anteriores a respeito de casas mal-assombradas. Uma pessoa visita a propriedade (ou a reencontra, depois de muito tempo), confrontando-se a traumas do passado. Aos poucos, a protagonista descobre, junto ao espectador, os horrores que ocorreram naqueles cômodos, enquanto sofre com visões, lembranças perversas e sombras perturbadoras atravessando os corredores. Os fantasmas mantêm a predileção por locais gigantescos e envelhecidos, ao invés de quitinetes no centro da cidade ou apartamentos modernos com varandas gourmet. Vozes do Passado (2020) abraça o imaginário popular, especialmente em se tratando de uma heroína grávida como Ellie (Emma Draper). Nestas premissas, mulheres grávidas se transformam em figuras frágeis e hormonais, propensas a alucinações, crises de ansiedade e distorções do real. O rancor dela em relação aos pais também se presta às narrativas de dores recalcadas que voltam à superfície durante a viagem. O espectador se prepara então para os sustos e efeitos sonoros típicos das aparições de fantasmas, demônios, bruxas ou equivalentes. Nota-se o prazer em partir de códigos reconhecidos, utilizados à exaustão pela produção industrial.
Entretanto, o filme não demora se distinguir da média do horror situado em mansões fantasmagóricas. Em primeiro lugar, os personagens e a câmera permanecem presos no casarão durante a trama inteira. A separação entre o exterior comum e o interior perigoso costuma ser fundamental aos roteiros do tipo, porém o diretor Jake Mahaffy insiste que o espectador tenha uma experiência de imersão completa nesta geografia labiríntica. É difícil saber quem se encontra na sala ou na cozinha, e qual trajeto precisa ser efetuado entre um e outro. A angústia decorre do trabalho vertiginoso dos espaços: a jovem observa um cômodo escuro, e dentro deste plano subjetivo, enxerga a si própria no quarto. Adiante, a professora universitária percebe o vulto da irmãzinha morta no quarto ao lado. A montagem brinca de planos e contraplanos, adotando inclusive o ponto de vista da assombração, observando a visitante. Quantos filmes de terror permitem ao público enxergar o real pelos olhos do sobrenatural? Outro fator essencial decorre da constituição desta casa: ao contrário das principais obras do gênero, o grande imóvel jamais é apresentado de modo assustador. Esqueça os planos noturnos com gelo seco ao redor da propriedade e a luz de alguma janelinha acesa: para o diretor, este seria um lar banal.
Vozes do Passado deve ser apreciado ou rejeitado pelos mesmos motivos, no caso, a confusão de sentidos. Ao invés de plantar pistas do mistério rumo à revelação, onde todas as peças se encaixariam, o cineasta prefere manter ambiguidades e sentidos duplos. Chegada a conclusão, o espectador ainda terá dúvidas quanto ao que realmente ocorreu entre Ellie e a irmã Cara (Ava Keane) na infância, sob os cuidados da ambígua Ivy (Julia Ormond), uma mãe tão protetora quanto sufocante. A linha entre a realidade e o delírio se borra de maneira permanente: algumas atrocidades soam possíveis apenas num mundo fantástico, sendo compatíveis talvez com a psique fragilizada da mulher confrontada a um doloroso episódio do passado. O longa-metragem alimenta significados amplos, costurando numa única cena presente e passado: a Ellie contemporânea passeia pelos corredores, e ao avistar um cômodo entreaberto, percebe-se no passado. As manchas pretas que a perseguem são explicadas tanto pela ciência (“O corpo de uma mulher grávida sofre transformações”) quanto por fatores sobrenaturais (a mancha remete à morte, adquire a forma de um cordão umbilical ou de um inseto). Evitando a posição de vítima, Emma Draper constrói a heroína por uma perspectiva combativa, de voz grave e falas brutas. A disputa com a mãe ocorre de igual para igual — é difícil determinar o opressor e o oprimido neste caso.
Infelizmente, algumas fragilidades impedem o belo filme de ir ainda mais longe em sua distorção do real. A construção de Ivy no passado, com uma peruca falsa, quebra a imersão de cenas tensas, o que também vale para a figura do pai envelhecido no presente. O roteiro tem dificuldade de ocupar ao longo do filme este senhor fundamental aos conflitos de Ellie. A importante sequência envolvendo o vaso de cristal se repete a ponto de perder sua força, enquanto o festival de imagens distorcidas em ângulos diagonais, na conclusão, banaliza uma tensão potente por si própria. Ao menos, Mahaffy adota um gesto de direção sem meios-termos, evitando atenuar confrontos para agradar a um público amplo. A configuração asfixiante da casa, tomada por estampas florais nas paredes, cortinas e roupas, cria um aspecto de sonho; já a brincadeira com as caixas de papelão contendo itens diferentes de suas etiquetas aprofunda o teor de enlouquecimento compartilhado com o espectador. A decisão da montagem de apresentar a morte numa fração de segundos, em algo próximo da mensagem subliminar, constitui outra aposta ousada. Eficazes ou não, estas escolhas denotam a vontade de criar tensão via linguagem cinematográfica, em oposição a meros artifícios de texto e de efeitos visuais.
Por final, o projeto deve seu sucesso à construção de um drama eficaz, antes de enveredar pelos caminhos do terror. Temos acesso à psicologia destes personagens, aos seus desejos para o futuro e modos de agir antes que a fantasmagoria os atinja. O mundo exterior será bem representado, metaforicamente, pelo carpinteiro e pelos slides de história da ciência, que remetem à formação acadêmica da heroína. Rumo à conclusão, uma das múltiplas interpretações oferecidas ao espectador estabelece uma ligação perversa entre a paixão da filha pelos estudos e as práticas obscuras de outro membro da família — psicanalistas devem se deliciar com certos acontecimentos do último terço. Em especial, o diretor enxerga uma maternidade opressora e grotesca. Ele rejeita a suposta “vocação natural” das mulheres ao cuidado dos filhos, criando uma trinca de relações tóxicas de filiação — de Ivy com Ellie, e de Ellie com o bebê em seu ventre. Um fator incômodo da narrativa, e cinematograficamente instigante, decorre da sugestão de que a criação (artística e gestacional) implica num ato simultâneo de cuidado e agressão: a mesma mãe que nos cria com amor será aquela que trará nossos principais traumas de vida. Neste sentido, o terror monstruoso dialoga muito bem com as angústias comuns da gravidez.
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O filme é uma bosta!
Excelente critica, análise perfeita. Filme não compreendido por pessoas com visões limitadas, as quais raramente quebram paradigmas. Freud tem razão, os traumas são gerados nas famílias, na maioria das vezes.