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Sinopse

Catherine Claire aceita se mudar para uma cidadezinha quando o marido, professor de história da arte, consegue uma vaga de trabalho na universidade local. Depois de se mudarem para um casarão antigo, ela começa a suspeitar da presença de elementos sobrenaturais no local.

Crítica

No subgênero do terror consagrado às mansões mal-assombradas, a presença de espíritos costuma estar associada a ameaças de morte. Normalmente, o elemento sobrenatural indica algum crime cometido no local, o desejo de vingança após o assassinato, o trauma de uma figura feminina etc. De qualquer modo, os ingênuos moradores são atormentados pelas figuras que se negam a partir. Este segmento lida com os conceitos de tradição, família e propriedade, ou seja, o ideal conservador de sucesso. É impossível que os dois núcleos convivam no imóvel, por maior que seja este espaço: apenas uma célula familiar deve ocupar cada casa. Estas produções lidam com normas sociais, razão pela qual os fantasmas já foram no passado adultos infiéis, filhos bastardos e outras formas de subversão da moral e dos bons costumes. Em conjunção com as tramas de invasões domésticas, estes roteiros brincam com a proteção e a intimidade: o lar se torna a fonte do perigo, enquanto a vida entre quatro paredes, distante do olhar da comunidade, se converte em algo tão fascinante quanto proibido. Estas histórias carregam um teor inerentemente voyeurista. “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher”, afirma o ditado popular e machista.

Estas ideias ajudam a discutir Vozes e Vultos (2021), produção que altera sensivelmente a fórmula. Partindo da premissa tradicional (dupla jovem se muda para um casarão e começa a presenciar elementos sobrenaturais), ela sugere a convivência pacífica entre humanos e fantasmas. Apesar do medo provocado por estes, logo se descobre que estas entidades femininas buscam ajudar a nova proprietária da casa, Catherine Claire (Amanda Seyfried) a perceber a realidade com outros olhos. O conflito abandona o objetivo da detecção de espíritos em detrimento da descoberta das maldades muito mais humanas ao redor. As forças do além desempenham a função de elo entre mulheres de diferentes gerações, sempre oprimidas ou assassinadas pelos maridos. Em outras palavras, o mal decorre de comportamentos terrenos, próprios ao funcionamento patriarcal. A jovem artista, reduzida à função de dona de casa e “esposa do professor universitário”, tem como maior obstáculo o controle masculino, ao invés das vozes em sua casa. O público se depara com o gesto voluntário da mulher em direção ao transcendental, à medida que se afasta do marido.

Assim, a produção parte de elementos fantásticos (invocações de espíritos, vultos no fim do corredor, toalhas levitando), apenas para deixá-los em segundo plano. Os diretores Shari Springer Berman e Robert Pulcini poderiam fazer destas aparições o centro do espetáculo, no entanto, recorrem a construções discretas dos fenômenos paranormais. Acima de tudo, os personagens humanos não existem em função dos vultos, e sim o contrário. Uma vez que a trama pode seguir sem a intervenção do além, abandona estes conflitos para se concentrar apenas no dilema matrimonial de Catherine. A dupla explora o horror enquanto meio, ao invés de finalidade. Por esta razão, pode decepcionar uma parcela do público interessada nos choques e sustos explícitos. Aqui, luzes piscam aleatoriamente e rádios tocam apesar de desconectados da tomada – os fenômenos se limitam a avisar de sua presença, sem atacarem os humanos, nem intervirem diretamente na rotina. Os fantasmas aterrorizam, no sentido estrito do termo, ao invés de levarem à morte.

Nos dois primeiros terços, Vozes e Vultos equilibra bem o material humano e os aspectos fantásticos. A psicologia se aprofunda por meio da anorexia da protagonista, de sua relação distante com a filha, e especialmente da amizade travada com uma colega feminista Justine, de nome inspirado em Sade, e brilhantemente interpretada por Rhea Seehorn. Aos poucos, o protótipo do marido perfeito se converte em algo mais monstruoso do que as forças supostamente malignas. O roteiro, baseado no livro de Elizabeth Brundage, faz questão de associar as transformações de Catherine e George (James Norton) à exploração da sexualidade: as cenas acumulam interesses eróticos para ela e para ele, viabilizados fora da casa, seja em estábulos ou no gramado. A direção observa com mais desejo o corpo dos homens do que aquele das mulheres, e evita tecer julgamentos morais sobre as atitudes delas. Embora as simbologias sejam simples demais (a aliança de casamento, o barco de nome “Horizonte Perdido”, o título do livro estudado pelo professor), o texto efetua uma conexão interessante com as artes plásticas, a fotografia e a música. O projeto possui a audácia de propor que o vilão seja metaforicamente deglutido pela obra pesquisada – o sujeito cético, e por isso amoral, é devorado pelas forças que tentava dominar. A natureza se revela feminina e vingativa.

Assim, a trama acredita numa justiça/vingança divina ao punir os personagens maléficos através de uma intervenção superior (até os céus são mais perversos que os fantasmas, neste caso). O terço final perde um pouco de sua força ao acelerar conflitos, acumular mortes rápidas demais, e deixar Catherine de lado para se concentrar nas revelações envolvendo George. A sutileza da condução inicial se rende à necessidade de correr para o desfecho e fornecer algum tipo de emoção frenética aos espectadores privados de sustos e sangue. O desfecho desperta a aparência de concessão ao gosto médio, ou às imposições de estúdios e produtores. Ressalvas à parte, o resultado foge da obrigação do final feliz, preferindo propor uma trajetória perversa à dupla principal. A amarga fábula aponta para problemas sociais crônicos, encontrando na representação do real (as fotografias e as pinturas) os verdadeiros ícones de medo. No elenco, Amanda Seyfried efetua uma composição discreta, e por isso mesmo interessante, da protagonista avessa às posições de vítima e mártir. James Norton carrega em sua atuação, ainda que a intensidade seja solicitada pela direção. Ao final, esta obra em anticlímax anuncia as emoções típicas das casas mal-assombradas para entregar uma discussão metafórica sobre o feminismo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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