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Sinopse

Wendy vive com seus irmãos gêmeos e tem sede de aventura. Os três decidem embarcar num trem, guiados por um jovem misterioso que os leva a uma ilha onde ninguém envelhece.

Crítica

No meio de uma caótica lanchonete de beira de estrada, as pessoas entram e saem, a cozinheira prepara lanches na chapa, a música toca, as pessoas conversam, mas a câmera só tem olhos para a bebê silenciosa no canto do balcão. Esta cena sintetiza a abordagem de Wendy (2020): enquanto os adultos levam suas vidas atarefadas e compromissadas, o diretor Benh Zeitlin prefere se focar no universo particular da infância. O terço inicial desta aventura baseia-se inteiramente na oposição entre as duas esferas: por um lado existem as contas para pagar, as casas miseráveis, os sonhos abandonados pelos pais no intuito de cuidarem dos filhos. “Você ainda vai trabalhar com um esfregão e uma vassoura”, alerta ameaçadoramente um adulto ao garotinho presente na lanchonete, que protesta: “Mas eu queria ser pirata!”. Todos riem. Ninguém quer trabalhar com um esfregão e vassoura, lembram, mas as coisas são assim. A realidade é amarga, como se percebe pela dificuldade da mãe de Wendy em cuidar dos filhos pequenos. Inconformadas com a ideia de que crescer corresponde a levar uma vida miserável, as crianças fogem. Foge-se da tristeza, da pobreza e da vida adulta, compreendidas como um grupo indissociável.

As adaptações de Peter Pan ao cinema costumam associar a trama ao escapismo, ao mundo mágico e colorido. Felizmente, Zeitlin privilegia a perda da inocência à nostalgia da mesma. Ele propõe uma série de subversões à lenda: primeiro, decide se focar em Wendy (Devin France), ao invés de Peter Pan, levando as ideias de traquinagem, pirataria e violência ao universo feminino, sem restringir a aventura ao domínio tipicamente masculino. Segundo, apresenta um Peter Pan negro e com dreadlocks, evitando o imaginário asséptico do garotinho branco em moldes europeus. Ao combinar crianças de diversas etnias e raças, o diretor se preocupa em construir uma Terra do Nunca recortada de uma zona geográfica precisa, equiparando os sonhos de crianças do mundo inteiro. Se o amadurecimento os confronta às especificidades de seus países e etnias, a infância demonstra a potencialidade que têm em comum. Terceiro, trata a vida adulta como a perda literal da infância: no terreno mágico desta aventura, as crianças que param de acreditar na magia envelhecem rapidamente, até se tornarem idosas. O envelhecimento é transformado numa doença ou punição inevitável.

Através de passagens traumáticas na vida da protagonista, o diretor se apropria da fábula infantil para propor uma reflexão sobre a tentativa de dominar o tempo enquanto sintoma do medo da morte. Apesar de viajar a uma terra onde o tempo funciona de maneira adaptável, Wendy logo descobre as limitações deste cenário aparentemente perfeito. A sensação de potência infantil é confrontada às restrições do corpo jovem (ela descobre que precisa de adultos para realizar determinadas tarefas), enquanto a felicidade inicial se atenua diante da evidência que “todas as pessoas amadas desaparecerão um dia”, sendo a morte a única barreira intransponível pela magia. “Nossas vidas serão a melhor história já contada”, conclui ao perceber que a fuga de casa não constitui a única maneira de experimentar uma aventura. A vida dos adultos, afinal, deixa de corresponder à infância interrompida ou abandonada, e sim um passo inevitável para que a jornada continue. A coragem de Wendy está associada à vontade de potência apesar de suas inúmeras limitações (enquanto criança, enquanto indivíduo diante da sociedade, enquanto filha longe da mãe, enquanto ser humano frágil diante dos desafios da natureza).

Existe certo caráter niilista, no melhor sentido do termo, dentro do filme que sugere a emancipação do indivíduo a partir da percepção de que ele é insignificante em relação ao universo. Zeitlin sugere que é tão importante sonhar quanto se desfazer do sonho; é tão importante aproveitar a beleza da infância quanto abrir mão dela conforme se cresce. O diretor propõe uma abordagem psicologicamente madura, embalada nos moldes da aventura frenética, porém fincada no real. Ao invés de construir cenários computadorizados para a Terra do Nunca, opta por uma mistura de magia e degradação do real: a ilha secreta para onde vão as crianças consiste num desmanche a céu aberto, onde os piratas utilizam barcos corroídos pela ferrugem, transitam por galpões abandonados e brincam com garrafas velhas. Mesmo a “Mãe” (uma baleira fluorescente) é filmada em pedaços, coberta por lixo e musgo, distante da representação habitual do maravilhamento infantil. O diretor associa o vazio ao território de reinvestimento imagético e pulsional, no qual as crianças podem projetar seus desejos: trata-se de uma tela em branco, um caderno novo, onde serão autoras de suas aventuras. Ao invés de conceber mundos prontos, brinquedos finalizados, o filme fornece aos personagens uma terra ao mesmo tempo virgem e abandonada, para desenvolverem sua autonomia.

Wendy impressiona pela desenvoltura da filmagem. O cineasta repete a proeza de Indomável Sonhadora (2012) no trabalho espontâneo e verossímil com crianças. Tanto Devin France quanto os ótimos Yashua Mack, Gage Naquin e Gavin Naquin brincam, brigam e se provocam com um vigor normalmente imputado ao improviso, ainda que o controle da câmera dentro da água, sobre penhascos ou dentro os navios impeça esta liberdade. Zeitlin combina a eletrizante trilha sonora (jamais invasiva em excesso, e dotada de certa melancolia) com cenas longuíssimas, envolvendo diversas crianças e figurantes, o que pareceria o pesadelo de qualquer produção. Mesmo assim, o resultado é tecnicamente preciso, iluminando as cenas sem embelezá-las artificialmente (trabalha-se muito com luz natural), nem acelerar a trama ou introduzir cores ou apetrechos impossíveis num contexto naturalista. O trabalho de direção de arte, e mesmo o conceito visual do filme como um todo revelam a coesão exemplar, fruto de uma equipe onde um setor não busca se sobrepor aos demais. Desde o magnífico Onde Vivem os Monstros (2009) não se encontrava no cinema uma representação tão bela, ágil e ao mesmo tempo criativa da imaginação infantil. Assim como Spike Jonze, Zeitlin privilegia as magias analógicas, as belezas não convencionais, compreendendo a infância enquanto período de empolgações, dores e incertezas. Jonze e Zeitlin observam as crianças de igual para igual, respeitando as fases (tanto duras quanto prazerosas) pelas quais necessariamente passarão.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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