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Sinopse

Lisa e Giorgi se encontram na rua, por acaso. Eles trombam, deixam um livro cair, pedem desculpas. Alguns dias depois, encontram-se novamente. O casal se apaixona, porém se torna vítima de um feitiço capaz de fazer com que acordem em corpos diferentes no dia seguinte. Como Lisa e Giorgi serão capazes de se reconhecer?

Crítica

O espectador deve demorar algum tempo até se acostumar com o universo particular deste filme. Nenhum elemento ocupa os espaços e funções previstos: um encontro casual na rua, despertando o amor à primeira vista, é filmado pelos pés dos amantes. Segundos depois, eles retornam, trombam de novo, deixam o livro cair novamente. Continuamos enxergando apenas os pés. Descobrimos que ele joga futebol profissionalmente através de um flash de menos de dois segundos. O mesmo vale para ela, nos estudos de medicina. A trilha sonora sugere uma atmosfera fantástica típica dos contos de fada. Ainda no início, as calhas das ruas, câmeras de segurança e o vento carregam mensagens secretas para Lisa (Ani Karseladze) a respeito de um feitiço que dificultará o reencontro com Giorgi (Giorgi Bochorishvili), pois ambos despertarão com aparências diferentes no dia seguinte. Os cenários e figurinos em estilo naturalista escondem inúmeras magias interpretadas sem alarde pelos jovens protagonistas, e invisíveis para os personagens ao redor. Cada nova cena traz uma surpresa que precisamos acatar sem questionamentos de ordem lógica.

A princípio, o interesse destes recursos lúdicos se encontra na brincadeira com a linguagem cinematográfica visando subverter expectativas do romance tradicional. Quantos encontros amorosos no cinema são filmados em grande plano geral, ou seja, à ampla distância dos personagens, de modo a discernirmos duas míseras silhuetas humanas no horizonte? What Do We See When We Look At the Sky? (2021) desperta a atenção inicialmente enquanto travessura autoral: ao invés de efetuar um salto temporal comum ao dia seguinte, letreiros aparecem na tela, pedindo ao espectador que feche os olhos e só abra quando escutar um sinal novamente. Desta vez, é o espectador quem efetua a montagem, num recurso singelo, embora anódino para a experiência: o efeito provocado continua sendo a boa e velha elipse. Metáforas, metonímias, paradoxos e outros recursos de linguagem são explorados à exaustão: o principal interesse do cineasta Alexandre Koberidze se situa no jogo de estranhamentos com o interlocutor. O resultado soa infantil, no melhor e no pior sentido do termo: por um lado, solicita que vejamos imagens banais com olhos novos, por outro, contenta-se com estripulias brincalhonas, coloridas e barulhentas (a trilha sonora ocupa a ampla maioria da projeção).

Em termos narrativos, esta disposição à fantasia se traduz na liberdade de alterar os rumos da trama a qualquer momento, sem justificativa prévia. Numa primeira fase, seguimos o romance impossível entre os jovens de rostos trocados. Em seguida, a Copa do Mundo de futebol adquire um papel importantíssimo, embora apenas a equipe da Argentina seja mencionada, jogando contra “um adversário”. Descobrimos que os cachorros se rua são apaixonados por futebol e possuem seus televisores preferidos para assistirem às partidas. Surge a possibilidade de combater o feitiço, uma viagem para a fazenda de bolos, uma equipe de filmagem prestes a encerrar uma produção etc. As reviravoltas se acumulam sem que a anterior tenha sido resolvida, ou sequer desenvolvida. Koberidze escreve o roteiro em lógica semelhante àquela das crianças criativas: “Então aparece um concurso de comer biscoito! Então ele cria uma sorveteria, e uma bola de futebol cai na correnteza, e o cachorro não sabe em qual lugar deve assistir ao jogo, e então ele esquece como joga futebol, e ela esquece como ser médica!”. Todos estes elementos ocorrem na trama, aliás.

What Do We See When We Look At the Sky? se aproxima da aleatoriedade, em outras palavras, do prazer da magia pela magia. Lisa e Giorgi são esquecidos durante tempo considerável, o contra-feitiço é abandonado pelo filme, a divisão em partes surte efeito nulo na história. O filme se torna inchado, inconsistente, em busca permanente de um foco – entretanto, ao invés de amarrar as pontas soltas, continua acrescentando fios. Em meio à duração excessiva de 150 minutos, o cineasta encontra espaço para dois longuíssimos vídeos de crianças jogando futebol em câmera lenta (nenhum deles importante à trama), um passeio por todas as salas de aula de uma escola de música (que tampouco exerce impacto significativo) e uma extensa demonstração sobre a técnica de montagem de bolos caseiros. Nos bastidores dessa obra, deve ter sido interessante acompanhar a evolução do roteiro até a versão final, assim como as discussões com a produtora. Seria intrigante assistir a Koberidze defendendo a importância de inúmeras cenas com casais olhando para a câmera, uma dúzia de alunos fugindo às aulas e a necessidade dos telões instalados num comércio.

Ao final, o projeto busca estabelecer uma homenagem ao poder do cinema, capaz de “revelar o real por trás das aparências”, segundo a obra. Após uma quantidade de truques suficientes para três espetáculos de ilusionismo, o criador termina sua apresentação com a ideia de que a principal magia se encontra dentro da sala escura, em frente a uma tela de cinema (algo irônico, visto que o filme foi exibido aos críticos e membros da indústria em formato online). O argumento possui valor simbólico, poético e mesmo filosófico, caso o cineasta estivesse disposto a discutir a Caverna de Platão e outros conceitos associados. No entanto, ele se atém às extravagâncias de uma história de amor alegremente inconsequente, dentro da qual Lisa e Giorgi constituem fantoches utilizados para decorar a cena. Os protagonistas têm pouco a dizer ou fazer, sem expressarem desejos ou qualquer forma de complexidade psicológica. Nesta combinação improvável de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001) com Jacques Tati, em reciclagem típica do pop, as referências constituem uma finalidade em si próprias. Quando baixa a poeira das cores, narrações gentis e trilha sonora com harpas, o que o espectador carregará consigo para fora da sessão?

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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