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Crítica


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Sinopse

Em As Aventuras de uma Francesa, a protagonista se chama Íris, uma mulher francesa em passagem pela Coreia do Sul, decide trabalhar ensinando seu idioma nativo através de um método bastante pessoal, desenvolvido por ela mesma, mas que garante resultados bastante efetivos.

Crítica

O cineasta sul-coreano Hong Sang-soo é conhecido por suas histórias aparentemente simples, mas repletas de significados e possibilidades de elucubrações para aqueles que ousarem se aventurar além da superfície. Entregando de dois a três novos filmes por ano – uma média que causaria inveja em Woody Allen – ele retoma, em A Traveler’s Needs, uma antiga parceria, com a diva Isabelle Huppert, que já havia atuado sob seu comando em A Visitante Francesa (2012) e em A Câmera de Claire (2017). Eis, portanto, o desfecho de uma improvável trilogia, uma vez que Anne, Claire e Íris são praticamente versões de uma mesma persona, essa mulher livre e desimpedida que, uma vez em um país que não é seu, acredita-se solta de qualquer amarra e pronta para as mais improváveis decisões. Essa mesma ausência de rede de proteção está também no cinema de Sang-soo, cada vez mais liberto de diretrizes pré-determinadas e disposto a exercer um olhar quase anárquico, aparentemente descomprometido de um contexto firme, mas instaurado dentro de um âmbito nunca menos atento ao factível. Parece pouco, e uma rápida análise é, de fato, insuficiente para abranger todo o seu potencial.

A protagonista de A Traveler’s Needs – ou seja, As Necessidades do Viajante, em tradução direta – é a cigarra, mostrando-se nitidamente à vontade em negar a si mesma a preocupação da formiga. Seu foco está no hoje, e se demonstra discernimento em relação às necessidades do amanhã, é porque outros a impelem a tanto. Íris – “Irrís”, como insiste em corrigir, e não “Airis”, como a chamam inadvertidamente em um sotaque anglo-saxão – veio sabe-se lá de onde, e também não declara ao certo quanto tempo pretende permanecer na Coréia do Sul. Uma amizade improvável com um jovem muitos anos mais novo do que ela – mas adulto o suficiente para morar sozinho e assumir as responsabilidades de suas decisões – lhe garante a hospedagem. Não há entre eles nenhum contrato ou combinado, apenas um entendimento tácito do que podem ou não fazer juntos, do que devem ou não um ao outro. Ele não exige nada dela, que por sua vez, pensa em retribuir de alguma forma, sem saber ao certo como. A liberdade, portanto, mais uma vez se faz presente, tanto como moeda de troca, como figura de linguagem em um relacionamento que apenas parece fazer sentido aos dois que dele participam.

Tanto é que, quando a mãe dele aparece de surpresa para uma visita, o caos chega de modo imperativo, atrapalhando planos para jantar ou ocupações em horas de folga. Ele gostaria que a hóspede se mantivesse longe dos olhos maternos, mas ela não é mulher de se esconder no armário. Aceita não ser bem-vinda naquele momento, mas nem por isso irá fazer parte de um jogo de dissimulações. Sai, com a bolsa debaixo do braço, prometendo retornar em duas ou três horas. A recém-chegada, por sua vez, tem tantas perguntas diante daquela desconhecida que nem sabe por onde começar. A personagem agrega ao conjunto mais questões do que respostas, e esse é o objetivo de Sang-soo: estimular o debate e a reflexão, oferecendo à audiência a base de um filme que só se completa pelo olhar do outro. Pois Íris não tem uma missão a cumprir, uma tarefa a ser executada ou uma jornada pela qual zelar – o que almeja é poder andar descalça, ficar levemente embriagada com a bebida típica local pela qual tanto se afeiçoou ou travar conversas com estranhos que cruzam por seu caminho nas ruas. É uma mulher aberta ao mundo.

O modo que encontrou de sustentar sua permanência nesse país que não lhe pertence é ensinando francês, sua língua-pátria. Mas antes que alguém indague qual sua formação ou preparo para tanto, ela mesma se encarrega em esclarecer: nenhum. Apenas pensou em um método que considera revolucionário, ainda que sua base para tanto seja inexistente: buscar reflexões a partir dos sentimentos e emoções alcançados por meio de conversas quase aleatórias, mas impregnadas por uma profundidade insuspeita num primeiro instante, mas cada vez mais óbvia quando nela se permanece. Essas que aceitam se colocar como suas alunas ou a abraçam com entusiasmo, ou aceitam com cautela, mas de uma forma ou de outra se deixam levar por um método sem comprovação, mas tão envolvente quanto o carisma que transborda nessa estrangeira aparentemente alheia às ordens e tradições que a cercam. A evidência do absurdo é também um convite a abrir mão da burocracia para se deixar levar pelo acaso, como se o improvável permitisse acesso a um bem-estar há muito almejado, mas, ao mesmo tempo, quase desacreditado, justamente por sua raridade.

Isabelle Huppert oferece um sopro de originalidade na elaboração dessa personagem leve como pluma, desprovida de segundas intenções, assim como faz da franqueza de suas declarações a chave de compreensão tanto de sua permanência, como dos inúmeros caminhos que se estendem diante de si, no compasso de espera pelo qual ela irá se decidir a seguir. A Traveller’s Needs se mostra, portanto, tanto um flerte sagaz àqueles que se preparam para sair de suas zonas de conforto, indo em busca de um amanhecer tão aberto à junção das probabilidades como do fluxo dos desejos, mas do mesmo modo um alerta aos que já se encontram em tal posição, fazendo de suas rotinas e cotidianos um chamado a uma irresponsabilidade quase afável, pois não temerária e nem perigosa, mas afeita à sorte e ao acaso. O espanto frente a tamanho desprendimento pode parecer inevitável, mas é o início de um processo de transformação, não apenas na teoria, mas acima de tudo, também na prática.

Filme visto durante o 74o Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2024

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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