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Sinopse

Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá narra a busca de Sueli Maxakali pelo pai, Luis Kaiowá, de quem foi separada durante a ditadura militar no Brasil. Acompanha a jornada da cineasta para reencontrar o pai, bem como as lutas enfrentadas pelos povos indígenas Tikmũ’ũn e Kaiowá em defesa de seus territórios e modos de vida. Premiado no 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (2024).

Crítica

Ao apresentar seu filme ao público antes da projeção como parte da mostra competitiva nacional do 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, a diretora Sueli Maxakali encerrou seu discurso com uma frase de efeito e um óbvio duplo sentido, fazendo referência a um atual sucesso de público e crítica da produção nacional. Ao concluir o que tinha a dizer sobre o próprio longa, afirmou que “ainda estamos aqui, nós, os povos indígenas, seguimos vivos e precisamos ser notados – e respeitados”. Muitos dos presentes fizeram ligação imediata com o drama dirigido por Walter Salles, mas a questão é mais profunda do que apenas um jogo de palavras. Ambos os filmes falam sobre a busca de pessoas desaparecidas durante a Ditadura Militar no Brasil. Se em Ainda Estou Aqui (2024) aquele que está em falta nunca mais foi encontrado, felizmente o destino deste que está no centro das atenções de Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá é sabido desde o início da trama – está vivo e saudável. Apenas distante. Em tempo, e em espaço. As filhas por décadas seguiram em busca do seu paradeiro. Encontrá-lo, ao menos agora, era uma questão de tempo. Essa jornada, porém, é mais sobre eles e os seus, do que ao público e os que porventura por esta história se interessarem. Há de se respeitar essa escolha. Mesmo que não seja uma que permita um fácil acesso ao espectador.

Pensando apenas no contexto do Festival de Brasília, no qual Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá integrou a seleção de 2024, percebe-se uma – positiva – tendência recente no cinema brasileiro de autoria indígena: histórias de alto valor a estes povos, contadas por estes a partir da interação com realizadores brancos. Apenas nos últimos anos, outros títulos que passaram por esse evento compartilharam de igual origem – A Transformação de Canuto (2023) é de Ariel Kuaray Ortega em parceria com Ernesto de Carvalho, premiados como o candango de Melhor Direção; e A Invenção do Outro (2022), sobre a tragédia ocorrida com os indianistas Bruno Pereira e Dom Phillips e a relação destes com os Korubos, foi vencedor como Melhor Filme. Dessa vez, os olhares estão direcionados ao drama vivido por Sueli e sua família. Ao lado do marido, Isael Maxakali, ela contou com as colaborações de Roberto Romero e Luisa Lanna no registro de uma jornada bastante íntima, ainda que de foro universal.

Engana-se quem pensar que os cineastas brancos tenham servido de guias – ao menos no sentido técnico – ao casal de realizadores indígenas. Difícil apontar qual dos quatro é o mais experiente. Sueli já codirigiu outros três longas, Isael possui uma extensa filmografia em diferentes formatos e durações, Romero tem formação como antropólogo e Lanna há anos se dedica ao ensino e à prática do cinema junto a comunidades indígenas. O coletivo formado a partir dessa união de forças, curiosamente, entrega uma narrativa coesa, voltada ao que precisa e merece ser dito, sem distrações que talvez agradassem a um olhar ocidentalizado, mas que pouco teriam a acrescentar a uma percepção mais naturalista e imediata. O que se passou não pode ser ignorado, ainda que não se faça presente a todo instante para ditar o andar dos acontecimentos de hoje. O foco está adiante, no que pode ser alcançado agora. E é nessa direção a qual os Maxakali se encaminham.

A emoção, por mais que esteja presente, não está no centro das atenções de Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá. O próprio conceito de família é bastante específico nessa realidade, voltado mais a uma leitura de comunhão com o próximo e com o que está ao seu redor, numa ideia de ciclo que se alimenta e se mantém. Portanto, é evidente que uma ausência demorada, que tenha atravessado décadas, é sentida com dor e tristeza. Mas não impede o seguir adiante. Não se lamenta mais do que o a urgência seguinte. Portanto, a perspectiva desse reencontro é saudada, mas não chega a ser exatamente transformadora. Acompanhar esse movimento, tanto daqueles que estão atrás de laços há muito interrompidos, como também dele que pouco recorda do que foi brutalmente afastado, é uma experiência de imensa capacidade de imersão, porém de diferentes significados. O espectador que não partilhe da mesma origem também não fará uso de iguais referências na leitura a qual terá que recorrer diante de um abraço que é substituído por um aperto de mãos, de uma espera que pode ser novamente adiada por mais um dia de pesca, por um sorriso constrangido que diz mais do que suas palavras são capazes de expressar.

Aproximar-se de Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá exige um preço, ainda mais para uma audiência pouco familiarizada com costumes e entendimentos que, por sua vez, são por demais instintivos aos Maxakali e aos tantos que, como eles, também se perderam durante uma intervenção que tanto atrasou o país como todo. Afinal, são brasileiros como quaisquer outros, e também estes tiveram suas perdas e desilusões. Por instante algum merecem menos pesar do que aqueles que geralmente ocupam as manchetes e os eventuais pedidos de desculpas e reparações históricas. Cidadania e empatia são duas forças exigidas aos que por aqui decidem se aventurar, e se o resultado obtido nem sempre parece oferecer uma recompensa à altura do que exige, isso é tanto pela escolha assumida dos realizadores em não abrir mão do que lhes é caro em nome de um alcance maior, como também da falta de esforço de quem assiste, tão acostumado a receber o que lhe é dirigido da forma mais mitigada possível. Há muito em jogo. Por isso mesmo, o processo não teria como ser simples. Mas também está longe de ser impossível. É um caminho. E o fim só será possível se, em algum momento antes, o primeiro passo for dado.

Filme visto durante o 57o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em dezembro de 2024

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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