Sinopse
Crítica
A recorrente imagem de Yoñlu (Thalles Cabral) deambulando vestido de astronauta é uma das tantas formas visuais utilizadas criativamente pelo cineasta Hique Montanari para desenhar na telona a peculiaridade de Vinicius Gageiro Marques, que factualmente cometeu suicídio aos 16 anos. Refutando os procedimentos convencionais às cinebiografias, o realizador traça um caminho corajoso, privilegiando o estado de espírito desse garoto que, como um cosmonauta, transitava socialmente sentindo-se alienígena, incapaz de “respirar” sem artefatos especiais. No caso, o expediente através do qual ele conseguia se oxigenar/relacionar, inclusive, com as angústias, era a criação artística, manifestada nos desenhos e nas músicas, conjunto que exprimiu sua propensão fatalista à melancolia. Os artifícios são escancarados. Não há disposição em fazer uma leitura realista. O lirismo que emana da engenhosidade da linguagem visa transmitir ao espectador um pouco da geografia mental desse garoto com, talvez, excesso de lucidez num mundo alienado. As únicas âncoras diretas, nuas e quase cruas, são as falas retilíneas do psicanalista vivido por Nelson Diniz.
A câmera desempenha um papel essencial para que Yonlu logre êxito na sua tentativa de fugir ao banal. A distorção das perspectivas, por conta da utilização de lentes adequadas para tanto, ressalta essa tortuosidade inerente à maneira como Vinícius observava o universo circundante. Dessa forma, uma simples caminhada pelas ruas de Porto Alegre se torna parte da deflagração da subjetividade de alguém constantemente tragado para baixo pelos problemas. Inexistem explicações para o temperamento do protagonista, tampouco o realizador se arvora a tentar perscrutar uma realidade da qual certamente não possui todos os meandros. Nesse contexto, é cabível, além de eficiente, a praticamente nula participação dos pais no decorrer do filme. Ambos são tidos como figuras ilustrativas, parte da superfície que Yoñlu deixa à vista a fim de camuflar a infelicidade. As várias animações, majoritariamente inspiradas em desenhos do falecido artista, ampliam essa dimensão lúdica, conduzida pela constatação da inevitabilidade. Assim, o longa-metragem se apropria inteligentemente da linguagem do personagem para revela-lo melhor.
Yonlu é fruto de uma interlocução hábil e sensível. Numa das pontas desse diálogo, o diretor que respeita o espólio deixado. Na outra, Vinícius, que acaba tendo nova oportunidade de “se pronunciar”, pois seu legado é o substrato narrativo. Corroborando essa constatação, as músicas de Yoñlu ecoam frequentemente em cena, devidamente creditadas para aprofundar o acesso à figura singular. As letras falam acerca das dificuldades e agruras sentidas, funcionando repetidas vezes como reforço melódico do que as imagens manifestam com vigor. A parte sombria é a interação com os anônimos na internet, de quem Vinícius teve auxilio (e incentivo) para dar cabo da própria vida. O ambiente online é representado numa sala verde, tornada difusa pelo belo trabalho de iluminação. As pessoas, por sua vez, surgem parcialmente escondidas atrás de avatares hediondos desenhados em folhas de papel. A direção de arte se encarrega de auxiliar a construção das esferas vitais ao entendimento múltiplo, rumo à tristeza do desfecho subordinado aos fatos.
A direção de Hique Montanari propõe uma imersão sensorial na personalidade de Vinícius, para isso lançando mão de uma série de elementos bem estruturados e conjugados. Alternando as letras cortantes, a deformação de determinados cenários e a atuação intensa de Thalles Cabral, o cineasta cria um filme instigante, edificado sobre pilares sólidos. O desalento do protagonista é ouvido e visto, delineado por uma câmera que tenta, de todos os jeitos, traduzir ânimos e humores em componentes audiovisuais. O mais bonito, porém, é a fidelidade ao trabalho de Yoñlu, assim nominado artisticamente. Considerado uma verdadeira revelação depois de morto, lançando comercialmente em diversos países, ele é cinematograficamente recriado como uma alma absolutamente torturada, excessivamente sensível e, por isso, incompatível com a insensibilidade dominante. O texto confessional, por meio do qual o menino expõe os monstros que tanto lhe afligem, é ora bonito, quando evoca o amor com poderes de alívio, ora angustiante, ao se deter na dor que o filme tão bem expressa.
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