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Crítica


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Sinopse

Em plena pandemia de Covid-19, um soldado norte-americano retorna à Itália em busca do irmão, um revolucionário procurado pelas máfias locais. Ao descobrir que este foi sequestrado, decide comprar guerra contra as gangues italianas.

Crítica

Em primeiro lugar, Zeros and Ones (2021) constitui uma forma de cinema orgulhosamente digital. Muitos cineastas utilizam câmeras leves e baratas enquanto tentam esconder a textura pixelizada e as limitações desta forma de captação - principalmente no que diz respeito às cores. Ora, ciente de que jamais reproduziria com seu equipamento caseiro o nível de uma grande produção, o diretor Abel Ferrara prefere explicitar o aspecto amador do longa-metragem. O filme abraça a imagem “suja”, de baixa nitidez e pouco ajustada às sombras. Em diversos aspectos, esta aventura de ação, com bombas e perseguições, se assemelha a uma brincadeira registrada com um telefone celular. O cineasta posiciona a sociedade digital no centro do roteiro: trata-se de um mundo dominado pela autoimagem e a manipulação de registros. Os personagens carregam celulares nas mãos o tempo inteiro, enquanto filmam os demais em atos que vão do sexo à tortura. Há telefones filmando outros telefones, câmeras focando telas de computadores, adolescentes com seus smartphones confiscados (“Ele é viciado em telas”, reclama a mãe) e a descoberta do paradeiro de prisioneiros graças a um celular comum. Soldados, mafiosos e indivíduos em situação de rua comunicam-se por telas portáteis, enquanto o título faz referência à configuração digital. Para o cineasta, a tecnologia permitiu uma geração onde todos são diretores em potencial. O princípio reforça a impressão de voyeurismo e paranoia.

Em segundo lugar, a produção reflete a experiência da pandemia de Covid-19. O soldado J.J. (Ethan Hawke), voltando da guerra, usa uma máscara cobrindo o rosto, evita o contato com outras pessoas, perambula por ruas vazias durante o toque de recolher. Ao cumprimentar a cunhada, beija-a de máscara. “Relaxa! Estamos negativos aqui!”, argumenta um personagem. Em outras narrativas, o “negativo" poderia se referir a um perigoso vírus fictício, porém o espectador de 2021 sabe exatamente do que estas pessoas estão falando. O drama desenha o desconforto de frequentar espaços públicos, pegar o metrô, ter sua temperatura corporal testada por aparelhos. Algumas produções exibidas em festivais já exploraram o mundo durante a Covid, a exemplo de Bad Luck Banging or Loony Porn (2021), vencedor do Festival de Berlim 2021. Entretanto, este projeto se torna a primeira obra representando esteticamente o incômodo da nova ordem mundial repleta de protocolos de segurança. Há fake news, negacionistas e fãs de teorias da conspiração a perder de vista. O herói precisa salvar seu irmão, um revolucionário extremista preso por gângsters, no entanto os cenários por onde transita se convertem em ambientes hostis por si próprios. Neste sentido, as intrigas internacionais e investigações contra bandidos poderosos se convertem em meras desculpas do roteiro: Ferrara basicamente se diverte ao confrontar códigos típicos da ficção com outros realistas até demais.

Crítico à sociedade conservadora, o autor aproveita as ruas de Roma para efetuar um paralelo entre a entrega humana à religião e sua disposição à guerra. O Vaticano explode pelos ares com efeitos comicamente artificiais - o filme sequer se esforça em simular um ataque verossímil. As bombas criadas em pós-produção detonam o patrimônio histórico italiano, enquanto o narrador em off efetua digressões metafísicas, sugerindo que “O mundo é o esconderijo de Deus”, e se perguntando se “Jesus foi apenas mais um soldado, uma vítima de guerra?”. A narrativa encontra a junção perfeita entre estes conceitos na noção de martírio, afinal, tanto extremistas religiosos quanto soldados podem se entregar à morte em nome de uma causa superior. Diante do assassinato de um personagem, os diálogos questionam: “Por que ninguém mais se ateia em chamas hoje em dia?”. O irmão gêmeo de J.J., interpretado por Ethan Hawke com cabelos longos e olhar maníaco, constitui a representação máxima do mártir contemporâneo, oferecendo-se à morte em nome das convicções e da crença num mundo melhor. Pela maneira brusca como as ações se desenvolvem, nota-se o pessimismo em relação a este tipo de atitude salvacionista. Ferrara despreza gestos grandiloquentes, abordados com devido senso de ridículo.

Dentro dos moldes do cinema de espionagem, Zeros and Ones não parece acreditar em nenhuma reviravolta de sua trama fantasmática, absurda, próxima de um pesadelo. Conforme a câmera treme, os pixels dominam a tela e o herói imerge em cenários escurecidos - pelo visto, explora-se apenas a iluminação presente nas locações -, torna-se mais difícil saber para onde J.J. está indo, como obteve tais informações, e de que maneira pretende resgatar o irmão. O diretor demonstra maior preocupação em captar a atmosfera tensa do suspense policial do que cumprir as regras do gênero. Pode-se sustentar a comparação da obra com uma paródia, ridicularizando as convenções ao limite do nonsense. O diretor estadunidense aproveita para fazer críticas ao próprio país, considerado imperialista, belicoso e dotado de motivações escusas para investir em confrontos estrangeiros. J.J. oscila entre o salvador e um sujeito egoísta, tomado pela crença cega de que norte-americanos têm o direito de interferir na política externa. O resultado soa retórico, pois seu valor decorre do aceno autorreferente, sem que as partes internas possuam grande valor em si. O filme se assemelha a um faz de conta entre amigos simulando uma história com mocinhos e bandidos envolvidos numa conspiração internacional. Pelo menos, o autor possui plena ciência disso: a narrativa jamais se leva a sério, nem tenta copiar o efeito de imersão do cinema hollywoodiano. Pelo contrário, prioriza o estranhamento.

Ao final, a obra se traduz numa iniciativa concedida apenas a diretores veteranos, de carreiras consolidadas, podendo manipular a linguagem pelo prazer de fazê-lo. A exemplo das produções recentes de Jean-Luc Godard e Francis Ford Coppola, converte-se num pequeno jogo de radicalidade autoral, assumidamente egocêntrica, partindo de pessoas que, tendo provado seu valor dentro de um sistema autoral, não têm mais contas a prestar com ninguém. Coroado com o prêmio de melhor direção em Locarno, o resultado adquire tal visibilidade e apreço em decorrência da marca associada ao nome Abel Ferrara, e pelo status estabelecido em torno de seus trabalhos. Caso um cineasta iniciante se lançasse no circuito de festivais com o mesmo filme, seria rechaçado, castrado por produtores e curadores, ou relegado à perspectiva do cinema experimental e de videoarte - algo nada depreciativo em si, vale dizer. O filme demonstra a manutenção de uma política dos autores no sentido clássico do termo: a defesa de obras decorrentes de personalidades apreciadas, demonstrando traços recorrentes. Zeros and Ones vai além de um suspense, de um filme de guerra, de um drama sobre o mundo digital - trata-se do “novo Ferrara”. Este cinema de marca representa uma bênção e uma maldição: enquanto concede total liberdade criativa aos autores, também permite qualquer tipo de traquinagem, recebendo passe livre para entrar nas salas de cinema com o jogo ganho. 

Filme visto online no Festival Internacional de Locarno, em agosto de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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