Crítica
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Sinopse
A cineasta brasileira Fernanda Pessoa fez um intercâmbio nos Estados Unidos quando tinha 15 anos. Ela morou numa das cidades mais conservadores do país. Quase duas décadas depois, w dois meses antes da eleição de Donald Trump como presidente da república, Fernanda retorna ao lugar para entender esse obscurantismo.
Crítica
A cineasta Fernanda Pessoa narra Zona Árida como se estivesse lendo uma carta enviada diretamente do futuro a si própria, especificamente à adolescente que foi no início dos anos 2000. Portanto, dificilmente o monólogo poderia ser mais íntimo. As palavras vêm carregadas de uma sabedoria adquirida com o tempo. São das que seguramente soam arrogantes aos jovens crentes em conhecer o mundo completamente antes de completar a maioridade. No retorno à cidade de Mesa, no Arizona, região desértica dos Estados Unidos em que fez intercâmbio há quase duas décadas, revolve essas reminiscências que negociam com o passar dos anos a sua permanência. Estamos diante de um documentário que tenta compreender o ontem e, simultaneamente, as raízes do tradicionalismo ali ainda vigente. A localidade é tida como a mais conservadora desse país que tomou de assalto a denominação “americano”, competente a todos os nascidos num continente, como se ela fosse algo essencialmente para designar estadunidenses. Essa apropriação já diz muito a respeito de uma nação fundamentada sobre as falácias camufladas de pilares, tais como a liberdade e a busca pela paz.
Fernanda ora medita sobre quem era, ora tenta revelar o que aconteceu com os antigos interlocutores na jornada precoce pelos Estados Unidos. Nem sempre os dois dados se atravessam produtivamente. Às vezes acontece de um ameaçar isolar o outro, como quando a realizadora, que parecia empreender uma investigação entnográfica, com direito à identificação da religião e das armas enquanto imprescindíveis à cultura vigente em Mesa, dá um passo atrás e volta a refletir baseada em suas fotografias de antes, nas quais exibia sorrisos a despeito das dificuldades enfrentadas. Ela é particularmente bem-sucedida ao utilizar o dispositivo da “carta ao passado” como forma de ressaltar o que apenas o acúmulo dos anos lhe esclareceu, por exemplo, o fato de ser considerada inexoravelmente uma latina e, portanto, estar a mercê do preconceito. No Brasil, gozava dos privilégios de ser branca, cisgênero e de classe média. Na terra do Tio Sam, entrava no bojo dos cidadãos de “segunda categoria”. Isso é evidenciado na recordação do telefonema repleto de ameaças e xingamentos.
Zona Árida igualmente sai-se bem ao, conforme o jargão, dar corda para os estadunidenses se enforcarem. Uma depoente mostra ignorância quanto ao conceito de “conservador”, atrelando-o ao pensamento liberal – do tipo: nem de direita, nem de esquerda (veredito: de direta). Nessa toada, o antigo amigo revela o sonho de ser um macho alfa protetor da família, inclusive da esposa “bela, recatada e do lar”. Fernanda não busca exatamente confrontar essas visões retrógradas, no máximo deixando escapar espanto frente ao anseio do rapaz, o de continuar desempenhando o papel do patriarca diligente. Há os que demonstram insatisfação, vide o professor mencionando um desconforto difícil de ser expressado em palavras. O espectro de Donald Trump, candidato que viria a ser eleito como presidente da autoproclamada nação mais poderosa do planeta, se desprende desse reacionarismo manifestado sem o mínimo pudor. Fernanda ressalta muros, barreiras impostas a estrangeiros, bem como a desfaçatez dos tantos detratores do chamado politicamente correto.
A realizadora brasileira tenta fazer essas dimensões íntimas e sociais se contaminarem de modo profundo. No entanto, a articulação do atravessamento privilegia a compartimentação, o que trata de destaca-las individualmente. Zona Árida expõe a natureza cotidiana e praticamente imperativa da ordem de intolerâncias e hostilidades que servem para galvanizar o pensamento de boa parte dos moradores de Mesa. Fernanda ocasionalmente consegue calar fundo na sensibilidade do espectador, haja vista a intensidade ao mostrar o preconceito contido nas assinaturas no anuário de adolescência. Simplesmente pelo fato de ter nascido no Brasil – algo que fica implícito – ela é hipersexualizada, instada a receber como elogio do crush a intimação “nunca perca essa bunda”. Quando ela deixa manifestações desse tipo e calibre falarem por si, o filme ganha uma força retórica considerável. Ao assumir um discurso mais direto, corre o risco de pontificar. Podemos conjecturar que a menina Fernanda escutaria mais (e melhor) quando a mulher Fernanda sugere os caminhos.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 6 |
Nayara Reynaud | 9 |
Edu Fernandes | 9 |
Diego Benevides | 7 |
Chico Fireman | 5 |
MÉDIA | 7.2 |
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