Crítica
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Sinopse
O comandante do maior campo de concentração de judeus na Segunda Guerra Mundial e sua esposa desfrutam de uma vida bucólica na sua residência que faz divisa com Auschwitz, sem preocupações senão ter uma rotina tranquila.
Crítica
Inúmeros filmes foram feitos sobre o Holocausto na Segunda Guerra Mundial. Desse modo, o cinema ajudou a propagar a noção dos horrores como algo da ordem do abominável. Algumas tramas recortam a vida de certo personagem levado a um campo de concentração, fazendo dele uma espécie de representante dos milhões de judeus assassinados pelos nazistas. Outros adotam uma abordagem mais ampla, observando a tragédia a partir de perspectivas que não necessariamente mantêm a trama num único cenário. Enfim, o assunto foi tratado de diversas maneiras, mas o cineasta britânico Jonathan Glazer apresenta um viés, senão original, certamente inusitado. Livremente baseado no livro homônimo de Martin Amis, Zona de Interesse tem como protagonista uma família alemã de classe média que mora na Polônia, mais precisamente na residência imediatamente adjacente ao campo de concentração de Auschwitz – a principal das instalações construídas para encarcerar e aniquilar os judeus perseguidos pelo Terceiro Reich. Rudolf (Christian Friedel) é um dos oficiais incumbidos do funcionamento do local. Já a sua esposa, Hedwig (Sandra Hüller), é a dona de casa que passa os dias cuidando dos filhos, supervisionando o trabalho das empregadas e garantindo que o jardim esteja o mais lindo possível. Seria uma família como outra qualquer, não fosse pela mais absoluta indiferença com relação ao destino de seus “vizinhos”, atitude que determina um grau enorme de perversidade.
Zona de Interesse é um filme de atmosfera bastante carregada, algo que Jonathan Glazer tinha demonstrado ser capaz de construir no seu elogiadíssimo Sob a Pele (2013). E a maestria de sua direção desta vez está na construção precisa de uma atitude cotidiana, como tantas outras, contrastando violentamente com os horrores que acontecem nos prédios ao lado, mas que testemunhamos indiretamente, muitas vezes os ouvindo extracampo. O cineasta não adentra Auschwitz com a câmera, mantendo-a como uma instalação além-muros. No entanto, dentro de uma pegada próxima a do terror social, os gritos abafados que invadem as cenas aparentemente banais (como uma mãe colocando seu filho para dormir, por exemplo) não nos deixam esquecer que a alguns metros dessa calmaria segura estão acontecendo desumanidades inomináveis. Rudolf e Hedwig passam seus dias planejando uma vida aparentemente normal, conversando a respeito de coisas relativas à propriedade, com ela esperando obedientemente o retorno dele para casa e às vezes recebendo os seus colegas de profissão para uma bebidinha depois do expediente. E o horror está justamente nessa naturalização da convivência até mesmo harmônica com a rotina vizinha de torturas, parte da prática do projeto genocida. É incômodo testemunhar essa família tão tradicional (no que o termo tem de pior) ceando e brincando com o cachorro quando, por imaginação, há o contraponto dos horrores do campo de concentração.
Se fosse um longa-metragem com abordagem mais convencional, talvez Zona de Interesse pudesse esgotar rapidamente esse jogo cênico entre a banalidade de uma rotina qualquer e o extracampo que Glazer nos convida a construir mentalmente a partir do que sabemos de Auschwitz. Aliás, é brilhante essa complementariedade entre o que a imagem mostra, o que ela sugere e aquilo que deduzimos a partir do conhecimento prévio sobre o Holocausto. Claro que Glazer não poderia fazer algo semelhante sobre um evento que não tivesse sido explorado à exaustão em diversas frentes (cinema, teatro, música, literatura, jornalismo, história, etc.). Isso porque a força dessa narrativa propositiva varia de acordo com o repertório do espectador a respeito desse episódio nefasto da existência humana na Terra. Além disso, o cineasta britânico ainda insere esporadicamente certas cenas com imagens negativas de uma menina que transita pelos campos vazios plantando maçãs no terreno e escondendo provisões enquanto é acompanhada por uma trilha gravíssima – e isso é embalado pela mãe lendo aos filhos a história de Joãozinho e Maria. É a forma de Glazer inserir uma espécie de fábula macabra e inquietante que torna o clima ainda mais pesaroso. Apenas adiante saberemos quem é essa garota e entendemos o motivo da sua curiosa movimentação nas cercanias. Enquanto isso, as pessoas conversam calmamente sobre estratégias logísticas de encarceramento e formas de aniquilação.
Zona de Interesse é o retrato duríssimo do desprezo que gera uma brutal insensibilidade. Numa das cenas mais indicativas disso, enquanto vemos ao longe as chaminés de Auschwitz a todo vapor (o que sugere a cremação de um número incontável de gente), Hedwig e sua mãe conversam calmamente sobre jardinagem e ainda fazem comentários levianos sobre a situação. A mulher mais velha lamenta não ter arrematado as cortinas de sua ex-patroa judia num leilão, o que sinaliza o desdém. Aliás, nesse breve diálogo fica evidente a manipulação da classe trabalhadora contra os judeus estigmatizados como avarentos e parasitas. Glazer também aproveita esse instante para realçar a prática alemã de usurpar pertences das vítimas cujo sofrimento atroz faz divisa com seus muros e a jardinagem bem cuidada. Aos poucos, essa família aparentemente perfeita (excetuando a perversidade) apresenta rachaduras, vide as escapadas matrimoniais do militar e, talvez, as da sua esposa exemplar. No entanto, a maldade profunda rompe a fina membrana da civilidade da classe-média ambiciosa quando Hedwig ameaça uma de suas empregadas de incinera-la e jogar as suas cinzas ao léu. Assim mesmo. Nessa brecha, Hedwig deixa à mostra do que realmente é feita. Enquanto isso, Glazer evita o interior de Auschwitz dentro da sua abordagem de ficção de época, assumindo brevemente um olhar documental para enxergar o que atualmente são ruínas históricas. É um empréstimo expressivo da realidade.
O aspecto mais perturbador de Zona de Interesse está mesmo na profunda indiferença da família sobre aquilo que acontece nos campos de concentração. Rudolf e Hedwig estão distantes da imagem dos nazistas monstruosos que dão ordens absurdas demonstrando agressividade por meio de sentenças de morte proferidas aos gritos e marcadas por descontrole emocional. A perversidade está nessa capacidade de fazer divisa com uma das maiores atrocidades da era moderna e ainda conseguir ter uma vida normal, na qual é mais importante decidir o tipo de aperitivo a ser servido aos convidados do que se compadecer da tragédia sendo repetida além-muros. Estamos acostumados à elaboração da imagem dos nazistas como feras desalmadas alguns tons destoantes da normalidade, mas Jonathan Glazer prefere a isso a imagem de quem naturaliza a barbárie no cotidiano, ou seja, a ideia de que a ruindade não é excepcional. Os algozes dos judeus são pais amorosos, mães cuidadosas e figuras aparentemente adequadas àquilo que entendemos por habitual. De cara, ninguém diria que são engrenagens de uma máquina assassina ou ao menos coniventes com o seu modus operandi. A falta de empatia de Rudolf e Hedwig fica mais ainda evidente nos únicos momentos em que ambos se incomodam com os mortos: ao esbarrar numa arcada dentária durante a pescaria e quando os filhos podem ter se banhado com restos mortais. Um retrato duro da insensibilidade humana à dor do outro.
Filme visto durante a 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2023)
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Excelente mostrando os bastidores do Maior Crime feito pelo Homem. O pior é que a tecnologia avança e a humanização retrocede a passos gigantes.
Excelente trabalho de arte. Esse filme é o melhor do ano na minha opinião.
Ainda não vi , porém me lembra do filme “o menino do pijama listrado “