A noite de domingo foi marcada por uma intensa programação de filmes na 14ª CineOP. O penúltimo dia da mostra emendou uma sessão na outra (escolhas tiveram que ser feitas), com diferentes recortes que deram especial destaque ao curta-metragem na programação. A maratona começou às 18h, no Cine Vila Rica, com uma forte seleção de curtas contemporâneos. Apesar da presença do prolífico Cristiano Burlan (com Imaginário, 2018) e do aclamado Plano Controle (2018), de Juliana Antunes, na sessão, os reais destaques foram Estamos Sendo (2019), de clarYssa, e Bicha-Bomba (2019), de Renan de Cillo.
O primeiro transforma uma disputa política de gritos entre “petralhas” e “coxinhas” no centro de Belo Horizonte em uma espécie de instalação audiovisual de horror – fazendo uso de um remix macabro do pesadelo kafkiano que vivemos atualmente no país. Já o segundo usa imagens de arquivo da infância do diretor paranaense, associadas à sua locução confessional, para discutir homofobia parental no país a partir do paralelo traçado com um caso real de LGBTQ-cídio. O resultado é violento, incômodo e – é bom avisar – cheio de gatilhos. Mas também necessário, direto e impactante.
A sessão seguinte do Cine, às 19h15, era formada por curtas raros da Cinemateca da Bretanha, na França. Apesar do caráter de curiosidade cinéfila quase imperdível, queria pegar o longa na praça e, como a apresentação da curadora francesa se estendeu, só consegui ver o primeiro. Mas valeu bastante. África 50 (1949), realizado por René Vautier, começa com um olhar colonizador e idealizado sobre os países africanos sob domínio francês – quase um vídeo institucional. Porém, o documentário dá uma guinada de 180º na segunda metade e apresenta uma forte crítica à miséria causada pelos interesses econômicos galícios no continente. A montagem é ágil, a locução jornalística é envolvente e clara, e o discurso é de uma sensatez política virulenta.
O que vêm a ser exatamente as qualidades que faltam a Gilda Brasileiro: Contra o Esquecimento (2018). Exibido no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo do ano passado, antes de chegar ao Cine Praça da CineOP, o longa documental dos diretores Roberto Manhães Reis e Viola Scheuerer mostra a investigação de uma estrada clandestina no interior de São Paulo que indicaria a continuidade do tráfico de escravos no país após a lei Eusébio de Queirós no século XIX. O maior problema da produção é uma ausência de metodologia – jornalística, documental ou científica – que se reflete na falta de foco e na indecisão sobre que história quer contar.
O documentário alterna entre a reconstituição da narrativa da descoberta da estrada; uma espécie de making of de um outro filme que a Gilda do título, responsável pela revelação, tenta realizar sobre a história; e longas “intermissões” em que o diretor faz uma espécie de análise semiótica de fotos tiradas por Marc Ferrez na época da escravidão, que se estendem por cinco a dez minutos.
O resultado é que Gilda Brasileiro não realiza bem nenhum desses filmes. A análise das fotos é interessante, mas pertence a outro longa (além da locução de Manhães ser sonolenta e emocionalmente inerte). O making of parece um tapa-buraco para o fato de que a investigação principal já havia sido realizada na época das filmagens. E a história da estrada em si, que é a parte mais interessante, sofre com a onipresença de Gilda em cena, tentando ocupar o centro de uma narrativa da qual ela não é o principal elemento. A protagonista é articulada e proativa, mas monopoliza um espaço que, se fosse ocupado por outros especialistas capazes de contextualizar e explicar melhor a história por trás da estrada, reforçaria o argumento e a denúncia do documentário.
Gilda Brasileiro tem bons momentos – como os moradores que revelam ter brincado “de escravo” na senzala da estrada quando crianças, ou terem tido amas de leite negras que ainda possuíam a marca de brasa (como gado) da época de escravidão. Mas estes se perdem na falta de foco e numa estrutura frouxa, que deixa a informação mais importante e que alicerça todo o argumento do longa para os minutos finais.
Encerrei a noite de volta ao Cine Vila Rica, com a última sessão homenagem a Edgard Navarro. Além da exibição do “crássico” maldito O Rei do Cagaço (1977) – que revela como o cineasta baiano reciclou vários de seus momentos em Super Outro (1989) – o destaque foi o média Talento Demais (1995), que encerrou o programa. Realizado em Betacam, o documentário faz uma divertida e exaustiva recapitulação histórica do cinema baiano, com direito a entrevistas, narração jornalística baranga e o típico humor escrachado do diretor. Indispensável para quem se interessa por cinema brasileiro, é ainda um registro histórico cruelmente irônico de como os desafios à cultura se repetem ciclicamente no país: as reclamações apresentadas pelos realizadores na época ecoam muito do atual impasse enfrentado pelo setor diante da paralisação das atividades da Ancine.
O crítico viajou a convite da 14ª CineOP.
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