23ª Mostra de Tiradentes :: A valorização de um cinema novo (Balanço final)

Publicado por
Bruno Carmelo

Dentro do nosso calendário cinematográfico, talvez nenhum festival possua tamanha importância para compreender os novos rumos do cinema brasileiro quanto a Mostra de Cinema de Tiradentes. Enquanto grandes festivais tradicionais disputam entre si as maiores produções, coroadas com nomes consagrados e prêmios em festivais internacionais, o evento mineiro valoriza a obra de diretores novos, com temáticas urgentes. Se algum evento é capaz de traduzir o pulso desta sociedade em crise, em tempos de desmonte do cinema, este festival é Tiradentes.

A 23ª edição trouxe uma quantidade impressionante de filmes de diretoras mulheres, de diretores negros, indígenas e LGBT. Esta escolha poderia decorrer de uma simples cota, um procedimento artificial destinado a atenuar injustiças históricas. Ora, estas obras estavam presentes nos festivais por representarem, hoje, o que há de mais radical e criativo no cinema independente. Já dizia a sociologia que o grande campo de batalha da pós-modernidade é o corpo, e são os corpos negros e marginalizados em geral que se espelharam na grande tela de cinema, contando suas histórias por si mesmos.

 

Mascarados

 

Cinema periférico

Qualquer festival que inclua filmes como Mascarados (uma poesia sobre o desmonte trabalhista), Cabeça de Nêgo (sobre a ocupação da juventude nas escolas), Inabitáveis (um olhar sobre corpos gays e trans em movimento, ocupando a cidade através da dança e da performance), Cavalo (reivindicação do orgulho negro e africano em tempos de racismo) e Perifericu (sobre os abismos entre a periferia e o centro, entre a norma social e os LGBTs), demonstra o vigor e o potencial político do cinema produzido pelas vozes marginais. Talvez seja exatamente este furor, que levou uma plateia inteira a aplaudir Cabeça de Nêgo de pé, que o governo Bolsonaro tente impedir em sua censura a editais de cinema.

Ao mesmo tempo, veteranos que ousam produzir longe dos grandes estúdios – Paula Gaitán, Geraldo Sarno e Helena Ignez – trouxeram belíssimos filmes, sinal de que o amadurecimento não implica em conformismo ou melancolia. Os três cineastas apresentaram obras urgentes e atuais, fornecendo um exemplo pulsante aos jovens que construíam os seus primeiros filmes. É Rocha e Rio, Negro Léo, Sertânia e Fakir constituem belos exemplos de cinema político e vanguardista, embora ainda mais louvável tenha sido a premiação da Mostra Olhos Livres (na qual todos esses títulos se incluíam) para Yãmiyhex: As Mulheres-Espírito, documentário surpreendente realizado por dois diretores indígenas: Sueli Maxacali e Isael Maxacali.

 

Canto dos Ossos

 

A premiação

A propósito de premiações, o júri oficial efetuou uma escolha curiosa ao dar o prêmio principal de longa-metragem para Canto dos Ossos, terror cearense dirigido por Jorge Polo e Petrus de Bairros, e de curta-metragem para o carioca Egum, de Yuri Costa. Trata-se de dois filmes enérgicos, marcados tanto pelas ideias contestadoras quanto pelos problemas de produção. Não eram escolhas nada óbvias, vistos os problemas evidentes de fotografia, som e montagem, além de roteiros desiguais. “Vitória do capenguismo”, brincou uma voz sábia entre os jornalistas.

Talvez se possa interpretar essa vitória pela vontade dos jurados em favorecer a obra de pessoas que demonstraram tamanha verve, ainda que lhes falte refinamento na linguagem. Com a escolha de Canto dos Ossos e Egum, o júri parece apostar que, com um pouco mais de recursos e experiência – os prêmios incluem aluguel de equipamentos, estrutura de pós-produção etc. – realizarão filmes ainda melhores. Ou seja, não se votou nos melhores alunos, mas nos alunos com maior potencial de crescimento. É possível que a produção impecável de Mascarados, por exemplo, tenha soado estruturada demais para jurados em busca de propiciar recursos a quem ainda não os tenha.

Como em qualquer festival, filmes excelentes se misturaram a outros muito menos interessantes – cabendo a cada um determinar qual obra se encaixa em qual categoria. Em se tratando de um cinema politizado, era comum que o mesmo título despertasse paixões em parte da plateia e deixasse a outra metade entediada, ou que um filme querido por alguns críticos fosse atacado pelos demais. Tiradentes parece acentuar os abismo, visto que o baixo orçamento das produções e o vigor juvenil dos diretores produz discursos menos preocupados em agradar um grande número de pessoas. Diz-se o que se pensa, da maneira como se pensa, sem meias palavras. A política, para além da forma e das narrativas, se encontra nesta própria postura.

 

Inabitáveis

 

De mostra a mostra

A 23ª edição foi questionada menos pela qualidade dos filmes do que pela distribuição dos mesmos em seções distintas. Por que o impressionante Cavalo não se encontrava na mostra competitiva, e sim numa sessão do último dia, sem concorrer a prêmios nem dar a possibilidade de devida repercussão na imprensa? Por que curtas-metragens tão fortes de mostras paralelas (Pattaki, Inabitáveis, O Verbo se Fez Carne) ficaram fora da Foco, ao invés de se substituírem a duas ou três experiências bastante fracas dentro da mostra competitiva? Quais eram os critérios de fato para posicionar os filmes entre Mostra Foco, Mostra Panorama e Mostra A Imaginação como Potência, ou entre a Mostra Aurora e as exibições especiais?

A distribuição de filmes no cronograma do festival também poderia despertar reflexões. Por que posicionar a Mostra Aurora durante a semana, deixando os Olhos Livres para o espaço privilegiado do fim de semana, quando a cidade está ainda mais cheia? Além disso, a dupla sessão de Pão e Gente e Mascarados, ambos no mesmo dia, poderia parecer óbvia pela temática do trabalho, mas apenas ressaltou as deficiências do primeiro filme. Já a escolha de deixar o extenuante Natureza Morta para a última sessão da Aurora não  favoreceu o acolhimento da obra.

Ressalvas à parte, a edição 2020 conseguiu reunir as linguagens mais diversas a partir de temas entrelaçados, além de trazer posicionamentos políticos muito ricos entre a poesia (Mascarados) e o enfrentamento (Perifericu), entre o lúdico (Pão e Gente) e acusatório (Egum), entre os híbridos que favorecem o documentário (Sequizágua) e os híbridos que favorecem a ficção (Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu). Tiradentes se revela um festival desafiador para críticos e espectadores, oferecendo sessões imprevisíveis em formatos impensados. É justamente este tipo de provocação constante que garante um festival dinâmico, perturbador no melhor sentido do termo.

 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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