Quem diria que um dia seria necessário relembrar, em filmes e discursos, a importância da cultura de um país. Mas cá estamos, e a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes se iniciou na noite de 24 de janeiro com uma forte demonstração do valor da união entre indivíduos em defesa de uma produção artística. Distinguindo-se de tantas apresentações protocolares de festivais, Tiradentes dilui seu discurso político em manifestações artísticas, com direito a canto, dança, performance e diversas formas de audiovisual.
Na tela do Cine-Tenda, em boa projeção e qualidade de som, aparece o letreiro “A cultura precisa ser protegida”. Uma a uma, as apresentadoras (mulheres, artistas e negras) relembram a potência das manifestações de Antônio Pitanga, Liniker, Emicida, Milton Nascimento. A coordenadora Raquel Hallak afirma que “precisamos de políticas públicas para a cultura”, como em qualquer país democrático, uma vez que as artes constituem “parte de um processo civilizatório”. A organização relembra que a Mostra constitui “um convite ao amor destemido por um ideal”, no caso, a ideia de um cinema livre, ousado, que reflita a sociedade como um todo.
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O ponto alto da noite veio com a homenagem a Antônio Pitanga e Camila Pitanga, pai e filha. Ele, expoente do Cinema Novo e presença marcante nos mais ousados projetos cinema brasileiro, a exemplo de Barravento (1962), Ganga Zumba (1963), Os Fuzis (1964), A Idade da Terra (1980) e Garotas do ABC (2003); ela, articulando o cinema radical de O Signo do Caos (2005) e Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios (2011) com os mais populares, mas não menos interessantes, Redentor (2004) e Saneamento Básico, O Filme (2007). Juntos, representam duas figuras politizadas e muito bem articuladas, que acompanham as transformações do Brasil e do cinema brasileiro com igual lucidez.
“Cinema que sonha”
Camila Pitanga aceitou o prêmio da mão dos filhos e sobrinhos. Emocionada, decidiu abandonar o discurso que havia escrito para a ocasião, expressando-se livremente ao parabenizar a Mostra de Tiradentes, vitrine para o “cinema autoral, cinema que ousa, que se pensa, e que sonha”. Agradeceu, em especial, a homenagem conjunta com o pai, artista que 80 anos de idade que “me vestiu de muitos olhares sobre a vida”, algo que seria vocação inerente à arte.
A fala comentou naturalmente o contexto sociopolítico do governo Bolsonaro, embora o presidente não tenha sido citado nominalmente. “Este país rachado nos convoca, atores e não-atores, a estar atentos e fortes, a ter coragem de sonhar, de criar utopias. Nós não vamos nos calar para o que nós acreditamos. [A situação] não está bonita, está escura. Mas o cinema é a luz no escuro, nós somos essa luz no escuro. Temos a urgência de olhar para o outro. Precisamos ser a resistência, olhando para os povos originários, para a ancestralidade negra. Todo dia é possível reinventar a vida. Não deixe a obscuridade calar os nossos desejos, a nossa criatividade. Eu falo isso para mim mesma também. Precisamos acreditar no valor do coletivo, o que não diz respeito apenas à cultura”.
“Esses garotos loucos”
Antônio Pitanga seguiu a contundente fala da filha em seu tom sempre catártico, festejando tanto a iniciativa dos curadores quanto os patrocinadores, que ousaram apostar no evento cultural apesar da campanha difamatória sugerindo que “artistas são vadios, só pedem dinheiro”. “Mas desde a Grécia antiga, onde nasce a democracia? Na cultura! Eu vim de uma família pobre. A partir da cultura, passei a ser Antônio Pitanga“, lembrou. Ele ainda listou diretores marcantes de sua trajetória, a exemplo de Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Cacá Diegues e Glauber Rocha.
“Esses garotos loucos tiveram a ousadia de não copiar Godard, Fellini, Antonioni. Eles criaram uma cultura genuinamente brasileira. Eu já vivi as minhas décadas, e vivi bem. Enfrentei a ditadura, e fui à África para compreender de onde eu vinha. Quando chego aos 80 anos, vejo a juventude dessa idade e digo que a cultura está de pé por vocês, pela presença de vocês. Esta Mostra ainda terá vida longa. Estamos vivendo tempos difíceis, mas Tiradentes diz: ‘Presente’!”, completou, sob fortes aplausos da plateia. Pitanga recebeu o troféu das mãos da esposa e deputada federal Benedita da Silva.
Édipo em Minas Gerais
A noite se encerrou com a projeção do primeiro longa-metragem, Os Escravos de Jó (2020), curiosa maneira de dialogar com o tema da 23ª edição, “a imaginação como potência”. Para além da importância do tema – a intolerância religiosa e política no Brasil atual -, e apesar dos grandes nomes envolvidos – o diretor Rosemberg Cariry, os atores Antônio Pitanga e Everaldo Pontes -, o resultado se revela bastante fraco. Esta releitura de Édipo Rei para Minas Gerais do século XXI condensa parte considerável de sua narrativa em diálogos expositivos.
Esteticamente, o projeto possui uma construção simples e lúdica, retirando a noção de “imaginação como potência” da representatividade imagética, e transferindo-a à narrativa oral. A sobrecarga de conversas entre os personagens culmina no storytelling próximo de uma lição simplificada sobre as mazelas da História: o Holocausto, os ataques à Palestina, o desconhecimento da juventude sobre suas próprias raízes. O estilo é diametralmente oposto ao catártico Notícias do Fim do Mundo, que Rosemberg Cariry havia exibido em 2019. Leia a nossa crítica.
A Mostra de Tiradentes segue no dia 25 com a exibição de novos longas-metragens inéditos, entre eles, O Lodo (2020) de Helvécio Ratton, e Sofá (2020), de Bruno Safadi. Entre os curtas-metragens, a Mostra Foco Minas e a Mostra A Imaginação Como Potência também se iniciam no sábado.