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Nesta terça-feira, 14, os jornalistas que cobrem cinema foram convidados a uma rara coletiva de imprensa virtual, fruto dos novos tempos de pandemia. Após uma sessão remota do suspense goiano Atrás da Sombra (2020), grande parte da equipe se colocou à disposição para perguntas. Estavam presentes o diretor Thiago Camargo, o produtor e roteirista Daniel Calil Cancado e os atores Bukassa Kabengele, Elisa Lucinda, Stepan Nercessian, Allan Jacinto Santana, Bruna Brito e Zécarlos Machado.

A produção, que estreia nas plataformas digitais nesta sexta-feira, 17 de julho, gira em torno de um detetive (Kabengele) encarregado de investigar uma morte suspeita no interior de Goiás. Enquanto descobre a relação dos homens poderosos no possível assassinato, o homem racional se depara com fenômenos sobrenaturais.

A conversa se pautou em torno de dois eixos básicos: a questão racial e a identificação de Atrás da Sombra com o cinema de gênero. O produtor ressalta a importância de um edital de Goiás para a produção de longas-metragens, sem o qual não teriam viabilizado a obra. Mesmo assim, ressalta, “80% da equipe está desempregada agora”, devido aos efeitos da pandemia na paralisação das filmagens.

 

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Um símbolo de resistência

Kabengele apresenta seu personagem a partir de um discurso eloquente e politizado: “Jorge é fruto e consequência de um sistema duro. Ele é um sobrevivente”, frisou. O ator faz questão de inserir a narrativa sobrenatural no contexto do Brasil contemporâneo, que precisa da “transformação pela arte” como forma de combater “o desmonte da cultura”. “A doença da Covid-19 ressaltou as grandes doenças sociais que temos: o racismo, o machismo, a homofobia”.

Zécarlos Machado concorda com a interpretação sintomática ao elogiar esta obra “de grande qualidade ética e estética”, citando explicitamente o descaso do governo atual com a cultura. “O filme tem muito a ver com as sombras que estão por trás de nós. Ele se conecta com a realidade difícil que estamos vivendo”.

“A vida é audiovisual. Hoje enfrentamos um problema, mas a gente é especialista em remar contra a maré”, pondera Elisa Lucinda, que felicita os jovens criadores por criarem tantos personagens negros. “A gente precisa forçar a mente para se lembrar dos filmes brasileiros com protagonistas negros”. Bruna Brito se posiciona contra a tendência do audiovisual em escalar atores e atrizes brancos, exceto quando o papel for especificamente criado para uma pessoa negra. Ela reforça a importância de pessoas negras interpretarem professores, advogados, detetives, e não apenas empregados domésticos.

 

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Stepan Nercessian em Atrás da Sombra. Foto: Divulgação

 

“Ainda bem que tem papel de racista”

Em meio à maioria de atores negros, Stepan Nercessian comenta que este é seu segundo projeto em um curto período de tempo onde constitui um dos únicos atores brancos do elenco principal. “Ainda bem que tem papel de racista, senão eu não iria trabalhar mais”, brincou. Para o experiente ator, o cinema brasileiro sempre se construiu através de atos de resistência:

“Antes, a gente fazia parte do Movimento dos Sem Tela, porque não tinha cinema para exibir os nossos filmes”, lembrou. Ele imagina que Atrás da Sombra seja lembrado no futuro, pela “loucura” de realizar um projeto como este e lançá-lo digitalmente, em plena pandemia. “Eu nunca trabalhei tanto, mas de graça. É live atrás de live”.

Para Nercessian, o cinema brasileiro sempre foi feito em condições adversas de financiamento, navegando contra a corrente, com o diferencial de que o atual governo não seria apenas omisso, mas também prejudicial às iniciativas dos artistas. “Já que não ajuda, pelo menos não atrapalha!”, suplica.

 

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Bukassa Kabengele e Bruna Brito em Atrás da Sombra. Foto: Divulgação

 

True Detective

No que diz respeito aos aspectos de suspense e terror, Thiago Camargo se diz fascinado pela “contraposição entre o pensamento racional, cartesiano e as crendices”, algo representado pela chegada do detetive à cidade onde investiga o crime. Mesmo assim, ele felicita o aspecto tipicamente brasileiro da produção: “Os filmes de terror que abordam o sobrenatural geralmente são muito americanos”, caso em que a presença do candomblé na trama teria contribuído a trazer um aspecto tipicamente brasileiro à produção.

Questionados sobre possíveis influências norte-americanas (um jornalista chegou a citar Jordan Peele como possível referência ao projeto nacional), os criadores preferem apresentar outra fonte de inspiração: a série True Detective, da HBO, na qual investigadores também mergulham em crimes misteriosos. O diretor inclusive pediu a Bukassa Kabengele que assistisse à terceira temporada, estrelada por Mahershala Ali.

“Dá para trabalhar os gêneros dentro da nossa cultura, mas sem dissociar totalmente do cinema norte-americano”, explica o diretor. “Para mim, não é um problema ter algumas relações com o cinema dos Estados Unidos. Fazem suspenses muito bons por lá”. Cancado completa: “É impossível fazer filme de gênero renegando os códigos americanos. A nossa preocupação estava em ressignificar esses códigos”.

Os atores foram unânimes ao felicitar o diretor e o produtor pela condução calma e precisa do filme, além de serem muito abertos às sugestões dos atores quanto à representação da cultura negra e das religiões de matriz africana. “Os meninos estão na crista da onda do politicamente correto, sem serem chatos”, brincou Elisa Lucinda. “Felizmente, eu não era a velha macumbeira. Nunca gostei de ver filmes de terror, mas confesso que adorei fazer este aqui”, conclui.

 

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Elisa Lucinda em Atrás da Sombra. Foto: Divulgação
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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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