Nesta sexta-feira, 17, aconteceu dentro do Br Lab 2023 a palestra intitulada Roteiristas Fora do Eixo/Regionalização, atividade que contou com as presenças da roteirista/diretora baiana Ceci Alves; da diretora/roteirista/produtora catarinense Cíntia Domit Bittar; do cineasta paulista Sérgio de Carvalho – diretor de Noites Alienígenas (2022), vencedor do Festival de Gramado de 2022, primeiro longa-metragem acreano a circular comercialmente no Brasil; e a medição da jornalista/escritora/roteirista gaúcha Valéria Pacheco Motta. Falar sobre diversidade regional é fundamental numa realidade como a brasileira, país de dimensões continentais que precisa ter uma produção descentralizada para contemplar a diversidade cultural. Mais do que cumprimento de cotas, inclusões precisam ser parte do modus operandi, o que se configura como desafio aos profissionais distantes do eixo Rio-São Paulo. Historicamente, a antiga capital federal e a cidade mais efervescente do país concentraram grande parte dos recursos do fazer cinema. Basta lembrar que nessas cidades a sedentarização da exibição se consolidou primeiro no Brasil – inclusive por conta das condições de fornecimento de energia elétrica que viabilizam a experiência compartilhada na sala de cinema. A era dos grandes exibidores e dos produtores aventureiros do início do cinema por essas terras tem no Rio de Janeiro e em São Paulo capítulos importantes, assim como os ciclos reginais que ofereciam alternativas geográficas à hegemonia.
O evento ocorreu presencialmente no Centro de Pesquisa e Formação do SESC São Paulo e foi transmitido ao vivo pelo canal oficial do BrLab no Youtube. Rafael Sampaio, diretor geral do evento, saudou os participantes e celebrou a parceria com a ABRA, a Associação Brasileira de Autores Roteiristas. Logo depois, os participantes da mesa tomaram seus lugares no espaço para o início das atividades. Como mediadora, Valéria saudou os colegas propondo a questão: o que fazer para quebrar o eixo? Cíntia começou respondendo: “precisamos nos questionar o que é esse eixo. Eixo é totalmente passivo de ser deslocado (…) é preciso políticas afirmativas, a nacionalização a partir da descentralização do fomento, a capacitação dos gestores regionais, pois sabemos o quão precarizadas são essas gestões locais. Precisamos de equilíbrio entre as capacidades gestoras. Ela também citou a importância de pensar as seleções e curadorias para quebrar esse eixo regional. Sergio continuou a conversa tocando mais especificamente no tópico da descentralização: “Sobre esse termo, uma vez, ainda como gestor cultural, fui a um encontro em La Paz, na Bolívia, para compartilhar boas práticas na gestão públicas. E uma apresentação me impressionou, a da cidade de Santa Fé, na Argentina (…) uma das diretrizes deles era não usar a palavra descentralização (…) descentralização sempre dá uma ideia de levar do centro às margens, às periferias, como se lá não houvesse algo. Então eles usam o conceito de revelar novas centralizações, no sentido se observar o que acontece nos lugares muito pouco visíveis”.
Ceci pegou esse gancho de Sérgio: “É importante discutir esse abalo das placas tectônicas que podem remodelar as ideias de eixos (…) Fico muito pensativa nisso do eixo quando pondero a minha trajetória (…) estudei em Cuba e lá questionávamos muito isso da parametrização, de um cânone que estaria ali para transformar as histórias em algo universal (…) lá em Cuba vivíamos a utopia de um novo cinema latino-americano que não remete ao centro (…) o cinema militante se pensa enquanto linguagem e pensa em seu lugar no mundo (…) a palavra descentralização poderia ser substituída por integração”. Feitas as considerações sobre essa necessidade de repensar a próprias ideias conceituais de centralização e eixo, a mediadora Valéria provocou a reflexão sobre o aspecto da formação audiovisual. Cíntia trouxe algumas experiências como participante do Fórum de Tiradentes a fim de apresentar as demandas do setor e falou um pouco de sua formação acadêmica audiovisual, num ambiente universitário muito rico em que ela obteve conhecimentos específicos, mas também tomou conhecimento de entidades, iniciativas e afins. Ela também ressaltou a importância dos cursos livres a fim de ampliar a formação no campo do audiovisual: “O ensinar é mão dupla, pois você tem de ouvir o que está acontecendo ao redor (…) é preciso educar o olhar de quem está no eixo também”, completou Valéria.
AINDA SOBRE A FORMAÇÃO EM CINEMA
Depois de utilizar um pouco o exemplo de Glauber Rocha, baiano de Vitória da Conquista que não teve formação em cinema, mas que pensava seus filmes a partir das realidades em que eles estavam inseridos, Ceci respondeu a indagação da mediadora sobre a diversidade, se ela não está sendo utilizada ultimamente como uma forma de cumprir certas cotas. “Que mercado é esse que absorve as questões autóctones? Será que ele está sensível a esses olhares diversos?”. Sergio deu continuidade à conversa falando da realidade acreana. “Um exemplo de sucesso em termos de formação é o projeto Vídeo nas Aldeias, do Vincent Careli (…) e Maurice Capovilla levou um curso livre para o Acre que foi super importante, toda aquela geração está no mercado. No Norte temos poucas escolas e oportunidades, padecemos de uma deficiência de mão de obra técnica especializada. Temos bons videomakers, mas faltam diretores de fotografia, por exemplo (…) às vezes é mais barato trazer alguém do Sudeste do que fazer conexão com alguém da Amazônia, pois nos falta essa infraestrutura”. Sergio continuou sua fala utilizando o exemplo do festival Pachamama, do qual é diretor geral, para falar da importância da integração com os nossos vizinhos latino-americanos e, além disso, questionar a padronização das obras, sobretudo na realidade dominada comercialmente pelas demandas agressivas do streaming.
Cintia chamou a atenção para uma tendência de observar a divisão por regiões e citou uma associação de cineastas mulheres indígenas que emprega uma divisão por biomas. “Existem outras maneiras de enxergar o território brasileiro (…) também precisamos pensar na integração do cinema brasileiro com o restante da América Latina (…) temos bons exemplos de integração que deveriam se espalhar para gerar outras perspectivas”, completou. A pauta da latinidade foi desenvolvida pelos presentes, especialmente tendo em vista a necessidade de o Brasil se compreender como parte integrante fundamental da latino-américa. Ceci diz que em Cuba foi muito “acusada” por conta de o Brasil ter virado as costas para a América Latina. Ela citou o axé music como um ritmo fortemente influenciado pelas canções cubanas, algo pouco falado quando o assunto vem à tona. “Teríamos muito mais força de mercado se de fato pegássemos o Mercosul no chifre (…) teríamos bem mais força de barganha mercadológico se não ficássemos tão centrados no próprio umbigo”, completou Ceci. “Falta uma visão mais arrojada do potencial que temos (…) penso muito nas comunidades, indígenas, periféricas (…) Rio Branco está de costas para as questões da floresta, para as tantas questões indígenas. Não deixa também de configurar uma diferença entre centro e margem”, afirmou Sergio com essa experiência no Acre.
PROPRIEDADE INTELECTUAL
“Precisamos ter uma discussão sem medo sobre o comportamento de certos festivais que escolhem os filmes de acordo com determinadas cotas, que entendem a diversidade como o cumprimento de cotas”, provocou Sérgio. “Teremos em breve a votação do marco regulatório dos streamings. Há questões muito definidoras nisso (…) uma delas é a propriedade intelectual das obras (…) estamos fazendo um trabalho de convencimento dos parlamentares sobre as obras brasileiras e aquelas que apenas são feitas no Brasil, mas cuja propriedade intelectual é estrangeira (…) isso é importante para garantir esse empreendedorismo das produtoras por todo o país (…) sem isso, as produtoras são reduzidas à prestação de serviço (…) uma regulação precisa estar atenta ao futuro, como a existência dos algoritmos (…) vivemos uma crise de histórias originais no mundo todo (…) para salvar o cinema não há outro caminho senão fortalecer a diversidade”, disse Cíntia, trazendo algo de extrema importância para a discussão. Ceci comentou sobre aspectos essenciais das políticas de Estado como ativadores do que precisa deslanchar, acordar, no corpo da nação, assim parafraseando o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil e continuou: “Pensar a produção independente é muito importante, pois ela está sendo minguada com a chegada dos streamings e as estruturas hegemônicas (…) no governo Michel Temer, Disney e Netflix fizeram parte do Conselho Superior de Cinema, ou seja, deliberavam para onde iam as verbas (…) precisamos de modelos de produção nossos, abrir os olhos para isso e não satisfeitos como prestadores de serviço (…) precisamos garantir a propriedade intelectual”.
Os membros da mesa conversaram sobre as reivindicações dos roteiristas por conquistas alinhadas com o cenário atual, vide o direito de receber por reprodução de obras audiovisuais em meios digitais, trazendo à tona a recente greve do Sindicato dos Roteiristas de Hollywood como um movimento indicativo dessa necessidade. Cíntia enfatizou que o Brasil é o segundo mercado mundial na área do VOD: “Tendo isso em vista, ninguém vai sair daqui, os grandes estúdios vão permanecer por aqui, então não precisamos ter medo de uma debandada”. Os quatro fizeram suas considerações finais, ampliando algumas questões anteriormente debatidas a partir de perguntas do público, logo depois encerrando essa conversa muito importante denominada Roteiristas Fora do Eixo/Regionalização, programação integrante do BrLab 2023.
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