A segunda mesa do BrPlot da quarta-feira, 22, teve como tema Boas Práticas na Sala de Roteiro e contou com as presenças de Bruna Trindade, Gabriel Brugni, Michel Carvalho e André Mielnik. Assim como todas as profissões regulamentadas, bem como representadas institucionalmente por entidades como sindicatos e/ou associações de classe, a de roteirista pressupõe uma série de regras de conduta e convivência entre os pares. Embora questões como responsabilidades e remunerações sejam critérios estabelecidos no manual da ABRA, a Associação Brasileira dos Autores Roteiristas, infelizmente nem sempre a observação e o cumprimento desses critérios acontecem plenamente no enorme âmbito mercadológico. Portanto, é fundamental que a classe respeite essas boas práticas, que lute para sua implementação e devido rigor, para que as relações profissionais não se deteriorem e, de quebra, para que haja certa unidade na relação entre autores-roteiristas e o mercado (este cada vez mais voraz e em constante mutação). Os convidados dessa mesa especial integrante da programação do BrLab 2023 falaram das funções exercidas em sala de roteiro e o quanto ainda devem lutar diariamente pelos direitos básicos.
André Mielnik, presidente da ABRA e mediador da atividade, começou falando da importância do manual da entidade como documento que auxilia os profissionais a terem um norte para a prática mercadológica, afirmando que se trata de um material em constante alteração pela contribuição dos associados, especialmente tendo em vista novos cenários que se apresentam. “Um dos principais pontos fortes trazidos nesse manual é a consolidação de níveis hierárquicos dentro de uma sala de roteiro”, completou Gabriel Brugni. Falando dessa cadeia, a mesa começou a discutir a função de Assistente de Roteiro, segundo André uma posição importada das salas de roteiro norte-americanas. E o mediador lançou a questão: Qual são as qualidades e atribuições esperadas desse profissional? “Segundo o Manual da ABRA (…) é o profissional que vai organizar a sala, de certa forma é uma função executiva. Ele faz notas, as atas das discussões criativas, revisa e formata alguns materiais, auxilia no controle dos cronogramas e prazos, então ele é o braço direito do Chefe de Sala (…) é o profissional que vai ajudar na logística, se as reuniões são por zoom ou presenciais, e também responsável por fazer a memória desse processo (…) segundo o Manual, ele pode contribuir criativamente ou não”, disse Bruna Trindade. Ela continuou dizendo que normalmente essa atribuição é a porta de entrada nas salas de roteiro e que ela é fundamental ao processo criativo por sua grande importância executiva.
Bruna questionou essa entrada no mundo do roteiro pela assistência, defendendo que seria fundamental ter mais formação para uma atribuição executiva. “Falando de diversidade, às vezes a sala é toda branca e aí há um assistente responsável por responder por questões de negritude (…) não está no contrato dessa pessoa que ela é consultora (…) ela fornece as experiências da própria vida e não há remuneração adequada”, completou Bruna. Ao retomar a palavra, Gabriel reiterou que boa parte da formatação das salas de roteiro são importadas do modelo norte-americano, inclusive a natureza executiva do Assistente de Roteiro. “E há questões que foram mal importadas, pois existem atividades remuneradas nos Estados Unidos e que aqui acabam não sendo (…) essa atividade é vista como uma porta de entrada (…) mas é bom ponderar que se essa pessoa se tornar Roteirista Júnior, o que será cobrado dela é algo totalmente diferente em termos de expertise”, concluiu. O mediador aproveitou o assunto para perguntar: O que de fato faz um Roteirista Júnior? “Pelo manual e por práticas mercadológicas que vêm acontecendo, a divisão pode ser assim: Roteirista Júnior, Pleno, Sênior e o Chefe de Sala. Sempre dependendo da natureza de cada sala, essa função do Júnior geralmente é aquela pessoa que está começando a escrever, tem prática e pode cumprir funções específicas, mas que não seria, por exemplo, aquela que recebe o roteiro para resolver um grande problema (…) o Roteirista Júnior frequentemente não responde sobre um tema de maior impacto”, disse Gabriel.
Na sequência, os participantes debateram questões relativas à remuneração. Bruna citou suas experiências para escancarar uma realidade em que muitas vezes o Assistente é instigado a escrever, mesmo que isso não esteja no seu contrato e que não diga respeito ao recebimento monetário apropriado à função contratual. Mas ele aceita até para agarrar a oportunidade. Ela seguiu apontando a complexidade dessa relação de poder estabelecida muitas vezes nas salas de roteiro. Bruna também citou algo interessante sobre as formações de boa parte das salas das quais fez parte: que havia em muitas delas uma correlação entre idade e hierarquia, com os mais velhos desempenhando as funções hierarquicamente mais destacadas nas equipes. Gabriel retomou a palavra para explicar um pouco das outras funções das salas de roteiro, ou seja, o Sênior, o Pleno e o Chefe de Sala. “Pleno e Sênior não são divididos por uma marca muito sólida e isso é normal, pois cada sala ajusta conforme suas necessidades (…) o quanto mais você avança na profissão, mais tem a experiência de saber como funciona a escrita do audiovisual para uma série de TV (…) o quanto mais você entende desse processo e do impacto que você tem dele vai impactar na sua colocação (…) já o Chefe de Sala é o líder, mas é importante dizer que não necessariamente é o roteirista mais experiente ou o criador da ideia original. O Chefe tem de estar antenado em como liderar, motivar pessoas, manter a sala em bom clima criativo”, disse Gabriel, um dos autores do Manual da ABRA, a Associação Brasileira dos Autores Roteiristas.
Logo em seguida, a mesa discutiu direitos autorais e copyright, assunto importantíssimo tendo em vista as novas configurações do mercado com a entrada em cena dos streamings, empresas que se tornaram novas gigantes do mercado rapidamente. Vale destacar que esse assunto esteve no centro dos debates entre os estúdios hollywoodianos e a WGA, Writers Guild of America, a associação dos roteirista da América do Norte, durante a greve da categoria que durou 146 dias recentemente, paralisando um sem número de produções por todo esse tempo. Gabriel fez apontamentos sobre os conceitos das categorias de direito autoral, inclusive ressaltando que não é possível importar plenamente o modelo norte-americano para o Brasil, pois estamos falando de países com legislações sensivelmente diferentes sobre essas questões. Segundo ele, no Brasil há dois tipos de creditação: Crédito de Função (pela função que você ocupa numa sala de roteiro) e Crédito de Escrita (independentemente da função na sala, mas de acordo com a assinatura dos episódios, por exemplo). Ao retomar a palavra, André disse que no Brasil esse Crédito de Escrita é muitas vezes vilipendiado, especialmente porque o processo de escrita pode passar por diversas mãos e etapas que nem sempre são adequadamente valorizadas, como o Produtor de Desenvolvimento, função na base do começo dos trabalhos.
“Comecei como produtor de desenvolvimento. Trabalhava fixo numa produtora, mas era apenas o menino dos editais, aquele que escrevia projetos (risos). Hoje sei que isso se chama Produtor de Desenvolvimento (…) para uma produtora continuar de pé, ela precisa estar sempre se movimentando do ponto de vista do desenvolvimento (…)é super comum as produtoras terem um laboratório de desenvolvimento de projetos, trabalhando com ideias da casa, com ideias que vêm de fora ou mesmo fazendo curadoria de projetos no mercado (…) todo esse trabalho é feito pelo setor de desenvolvimento. Para mim, embora seja um lugar muito legal, há coisas cruéis nessa atribuição (…) quando os projetos que a gente escrevia lá em 2012/2013, quando os streamings nem tinham chegado aqui com produção local, eram aprovados em editais, muitas vezes eu que tinha criado a ideia, o argumento, não poderia integrar a sala de roteiro daquele projeto, pois precisava continuar escrevendo outros projetos (…) era algo absolutamente frustrante, pois você trabalhava em algo desde o início, mas quando o projeto acontecia eu não poderia fazer parte dele (…) cheguei a ter alguns créditos de argumento, mas não atingia esse desejado lugar de roteiro (…) há obras que foram ao ar com muito da minha escrita, mas nos quais não tenho nenhum crédito de roteirista”, disse Michel Carvalho em sua intervenção inicial.
A fala de Michel expandiu um pouco essa discussão sobre a remuneração na cadeia audiovisual. Numa estrutura tão repleta de camadas e agentes, há setores com menos prestígio industrial (leia-se força de negociação) para garantir direitos de crédito e também de remuneração. Quantos profissionais tocam num projeto antes de ele ser efetivado e que sequer aparecerão nos créditos finais de filmes, séries e/ou novelas? Quantos deles, muitos fundamentais ao desenvolvimento e à concretização dos projetos, não foram adequadamente remunerados? Bruna citou que no manual da ABRA consta que um roteirista tem de ser creditado num episódio de série, por exemplo, quando ele escreveu cerca de 30% dele, logo depois questionando a métrica: “como a gente chega a esses 30%?”. Gabriel citou que esse parâmetro tem a ver com mudanças significativas às tramas, explicitando que há margens, muitas vezes, para que profissionais não sejam devidamente creditados, pois esse critério obedece a uma lógica subjetiva que pode ser contestada em certa medida. Infelizmente não houve tempo para questões na mesa Boas Práticas na Sala de Roteiro, um dos pontos altos do BrPlot deste ano pela consistência de uma reflexão que precisa ainda amadurecer na nossa indústria audiovisual.
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