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Ninguém sabia ao certo o que esperar da 30ª edição do Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema. Os organizadores tiveram muitas discussões sobre o formato híbrido, combinando sessões presenciais e exibições remotas (via televisão e Internet) devido à pandemia Covid-19. Em paralelo, a impresa e os convidados manifestaram hesitações iniciais quanto à decisão de viajar para Fortaleza.

De fato, não havia uma única maneira correta de agir face aos riscos de contaminação. Os festivais brasileiros que adiaram suas edições 2020 (Festival do Rio), aqueles que passaram ao formato completamente online (Gramado e Brasília) e os demais que dividiram sua edição em dois períodos (Festival Varilux, É Tudo Verdade) se adequaram a uma situação inédita que pegou a todos desprevenidos, o que vale tanto para profissionais do audiovisual quanto para produtores de eventos. Compreensivamente, as alternativas se multiplicaram.

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Cineteatro São Luiz, em Fortaleza. Foto: Chico Gadelha / Divulgação

 

As crises sanitária, econômica e política levaram a certa histeria, também previsível quando analisada em retrospecto. Algumas vozes da indústria alegaram que todos deveriam voltar às salas escuras imediatamente, senão, estaríamos matando o cinema. Opiniões contrárias alegaram que deveríamos ficar todos em casa, senão, estaríamos matando o público. Alguns disseram que os cinemas são muito mais seguros do que outros estabelecimentos comerciais (por causa da troca regular do ar condicionado), outros alegaram que se trata do lugar mais perigoso (por ser fechado, pela possibilidade de os espectadores retirarem as máscaras protetivas no meio da sessão).

Posicionamentos mais prudentes nos lembraram que a discussão não deveria estar centrada no “direito de abrir as portas”, e sim nos riscos de contaminação. O questionamento seríssimo sobre a saúde (física, não financeira) foi substituído dentro de determinados setores pelos pelo direito ao capital: se outro estabelecimento foi autorizado a ganhar dinheiro neste momento, então eu também posso. Se alguém se contaminasse, paciência: foi o outro que começou. A campanha de desresponsabilização e responsabilização de terceiros se alastrou com rapidez.

O Cine Ceará 2020 optou em sessões presenciais com público limitadíssimo: apenas 140 pessoas estavam autorizadas a frequentar as exibições noturnas, e nem todos os convidados compareciam à integralidade das exibições. Na prática, havia uma pessoa sentada a cada nove poltronas vazias, em termos estatísticos, e um espectador afastado do vizinho por quatro ou cinco poltronas, na prática, visto que o mezanino estava fechado e o público se concentrava no térreo.

 

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A curadora e diretora de programação Margarita Hernández (à esquerda), a diretora de produção Helena Colaço (ao centro) e o diretor do Cine Ceará, Wolney Oliveira (à direita). Foto: Divulgação

 

Dentro do possível, a imprensa estava segura: as pessoas mantinham suas máscaras, havia álcool em gel por todos os lugares, os transportes coletivos mantinham uma distância considerável entre passageiros, os encontros evitaram abraços. Estávamos todos a 1,5 metro de distância? Não tenho certeza. Poderíamos ter feito algo diferente? Talvez. Não seria o caso de procurar falhas numa organização eficaz. O festival prezou pela manutenção das sessões no cinema e pela segurança dos convidados, comprovando o zelo com ambos.

Os viajantes tiveram que assinar um termo de responsabilidade prévio quanto ao conhecimento dos riscos envolvidos. Críticos, cineastas, curadores e produtores, aceitamos juntos os perigos e as vantagens de retornar às salas de cinema. Até onde se saiba, nenhum problema de saúde relacionado à Covid-19, ou a qualquer outra doença, foi registrado durante o evento, e esperamos que as próximas semanas continuem assim.

A ausência de pessoas sobre os palcos do cinema provocou estranheza maior que o distanciamento das poltronas. Não havia apresentadora ao vivo; a cerimônia de encerramento foi previamente gravada; diretores que viajaram até o Cine Ceará não conversaram com os espectadores antes da sessão (apenas nos debates do dia seguinte). Os convidados assistiam a si mesmas projetados nas telas do cinema, representadas por suas gravações. Perdeu-se em espontaneidade, mas ganhou-se em segurança. Prioridades.

 

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A Meia Voz

 

A programação da mostra competitiva de longas-metragens foi uma das mais fortes dos últimos anos. Nem sempre se reúne títulos do nível de Última Cidade (2020), Era uma Vez na Venezuela (2020), Nazinha Olhai por Nós (2020), Branco no Branco (2019), As Boas Intenções (2020), A Morte Habita à Noite (2019) e A Meia Voz (2019). Trata-se de uma seleção diversa, contendo títulos inéditos ao lado de outros multipremiados, obras de artistas iniciantes juntos de cineastas consagrados, filmes feitos por homens e mulheres.

A marginalidade constituiu o tema predominante. No ano do afastamento social, multiplicaram-se as imagens de personagens abandonados, sem dinheiro nem família, perambulando por locais desertos. Roney Villela (em A Morte Habita à Noite), Júlio Adrião (em Última Cidade), Alfredo Castro (em Branco no Branco), as diretoras Heidi Hassan e Patricia Pérez (em A Meia Voz) representam estas figuras perdidas, buscando desesperadamente alguma forma de conexão.

Nestes filmes, a procura por afeto produz efeitos violentos (envolvendo sangue, estupros, abuso de crianças, violação de privacidade), o que reflete a crise do indivíduo em 2020. Os projetos realizados pré-pandemia foram muito bem escolhidos pela curadoria para refletirem o fenômeno da multidão solitária. A 30ª edição pertenceu aos marginais sobrevivendo em cenário agressivo.

 

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Última Cidade

 

A Mostra Olhar do Ceará comprovou a potência do cinema local, vencedor da edição anterior (com Greta, de Armando Praça) e representado igualmente na mostra competitiva 2020 (com Última Cidade). A seção paralela apresentou títulos do nível de Pajeú (2020) de Cabeça de Nêgo (2020) que, por sua qualidade apenas, mereceriam o troféu Mucuripe tanto quanto qualquer concorrente da mostra principal. Swingueira (2020) traz um cinema menos refinado, porém revela o talento de novos diretores que esperamos rever em edições futuras. Cabe questionar, no entanto, a presença do competente Rio de Vozes (2019) neste conjunto. O que está fazendo uma obra baiana-pernambucana no Olhar do Ceará?

Ao final, o júri efetuou escolhas curiosas para a premiação. Com todo o respeito aos colegas de profissão, e à arte do debate e do consenso inerente a qualquer júri de festival, parecem ter premiado categorias que chamam mais atenção a si mesmas, e não necessariamente aquelas que contribuem à coesão do conjunto. O prêmio de melhor edição foi entregue a A Meia Voz, filme mais picotado, repleto de sucessões velozes de imagens e colagens sobre tela. Para a melhor fotografia (Era uma Vez na Venezuela), escolheram o projeto de cores mais saturadas, e para a melhor direção de arte (Branco no Branco), o filme com figurinos e acessórios mais raros de obter.

As justificativas durante a cerimônia de encerramento foram desconcertantes. “É um filme de época, né?”, argumentou o representante do júri oficial sobre a direção de arte de Branco no Branco, sugerindo se tratar de uma obra “totalmente cinematográfica”. Ora, que forma de cinema é “mais cinematográfica” do que outra? A análise precisa ultrapassar os clichês inerentes ao valor da impressão de dificuldade (a melhor direção de arte vem do filme de época, o melhor fotografia vem do preto e branco, a melhor montagem vem do filme com muitos cortes e assim por diante).

 

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Pajeú

 

O vencedor da 30ª edição, A Meia Voz, foi o projeto que menos nos agradou entre os sete filmes exibidos na mostra competitiva. Faz parte do jogo aceitar a opinião alheia: o documentário certamente impressionou os jurados, assim como formou consenso no prestigioso Idfa, um dos maiores festivais mundiais do gênero, de onde saiu com o troféu principal. Ele representa um cinema carinhoso, mas repleto de exotismos sobre a condição de estrangeiro, contendo um sem-número de poesias visuais já consagradas em autobiografias documentais.

O lamento não decorre desta escolha, e sim do pouco apreço pelo cinema brasileiro. Com exceção do troféu de melhor ator a Roney Villela, a produção nacional saiu de mãos abanando da premiação, que não reconheceu nenhum valor no excelente Última Cidade, nem no discurso ambicioso de Nazinha Olhai por Nós. Prevaleceram as apostas narrativas mais convencionais – vide os prêmios a As Boas Intenções e A Meia Voz – ao invés dos discursos explicitamente políticos e radicais.

Assim, em ano de busca pelo afeto, o júri preferiu o cinema de conciliação ao cinema de enfrentamento. A presença de duas mulheres na direção do filme vencedor se tornou particularmente relevante aos olhos de Wolney Oliveira, diretor do festival, que sublinhou este fator durante a premiação. Outra cineasta mulher, a articulada Anabel Rodríguez Rios, levou o prêmio da crítica para casa, além do troféu de melhor fotografia e melhor roteiro.

 

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Era uma Vez na Venezuela

 

A cerimônia final foi marcada pela adaptação ao isolamento e ao formato do vídeo “ao vivo”. Alguns diretores gravaram agradecimentos rápidos, enquanto colegas brincaram com o dispositivo da autoficção, a exemplo de Rodríguez Rios. O homenageado Lázaro Ramos, sempre bastante eloquente, proporcionou o discurso mais emocionante de toda a 30ª edição: ao tratar o público presente de “família querida”, fez questão de agradecer não apenas pelo prêmio, mas ao festival enquanto símbolo de resistência.

“Muito obrigado ao 30º Cine Ceará de completar 30 anos e estar permanecendo”. Brincando com o próprio apelido, comemorou o troféu Eusélio Oliveira em terceira pessoa: “Quando Lazinho recebe um abraço desses, ele entende e fica muito grato. Espero encontrar vocês em breve nas telas do cinema”. Não poderia haver melhor acalento, vindo de um ator tão querido.

A propósito, Ramos estrelou o filme de encerramento, O Silêncio da Chuva (2019). O suspense coral, com uma dezena de personagens reunidos numa trama de assassinato, tenta reatar o público médio e o cinema de arte, o aspecto mais ousado da linguagem com o mais formatado televisivo. Trata-se de uma obra coletiva, de união. É compreensível ter encerrado a 30ª edição, em tom melancólico, porém orgulhoso, assim como o detetive interpretado pelo ator.

Que venha a 31ª edição, presencial ou online, no Cineteatro São Luiz e talvez, simultaneamente, na Internet e na televisão. Fizeram, e fizemos, o possível para valorizar o cinema, os filmes independentes, o valor da descoberta de novos talentos e dos encontros fundamentais aos festivais de cinema. Assim, garantimos que a cultura não passe em branco num ano de tamanha dificuldade para o audiovisual nacional. Seguiremos presentes em 2021, e 2022, e assim por diante, nas telas do cinema, na televisão, no computador, no celular, e principalmente na sala escura – usando máscara ou não.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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