A diretora Daniela Thomas divulgou um prefácio para O Banquete (2018), seu novo longa. No texto, a cineasta afirma que o filme “se passa em tempo real e filmá-lo foi uma experiência extraordinária”. Outro trecho explica que a obra pretende destacar “a dinâmica erótica entre homens e mulheres que usam a sedução como moeda de troca”, pois, segundo ela, “Trump, Weinstein, as denúncias de assédio somando-se a cada dia por aqui, são a ponta do iceberg de milênios de disparidade entre os sexos”. A produção, estrelada por Bruna Linzmeyer, Chay Suede, Drica Moraes e Caco Ciocler, integrará a mostra competitiva do Festival de Gramado 2018, que terá cobertura intensa do Papo de Cinema entre os dias 17 e 25 de agosto.
Em 2017, Daniela chamou a atenção do meio cinematográfico após apresentar o drama Vazante no Festival de Brasília. Durante o evento, o filme foi criticado por retratar superficialmente a escravidão e os personagens negros, o que gerou fortes discussões entre os participantes do evento, a ponto da diretora chegar a “pedir desculpas” pela realização. Em entrevistas que aconteceram após o festival, Daniela disse que “não estava preparada” para a abordagem.
O Banquete (2018) retrata um jantar onde jogos de poder e erotismo estão colocados à mesa, a vida dos convidados serão transformadas para sempre. Entre eles está o poderoso editor de uma revista, que celebra seu aniversário de casamento. Ele pode ser preso nesta noite, já que escreveu uma carta aberta com graves denúncias contra o presidente do país. Abaixo, o trailer oficial, e logo em seguida, o texto na íntegra da realizadora:
Sobre realizar O Banquete, por Daniela Thomas
O Banquete é a minha tragicomédia de costumes. Um filme construído, de um lado, pelo meu fascínio por atores – com quem trabalho e convivo há quarenta anos – com o engajamento que eles podem trazer para um papel, e de outro, pela verossimilhança que persigo no meu cinema e que aqui centrou-se no diálogo. Queria ouvir os personagens falando na tela exatamente como as pessoas falam, ou falavam em volta das centenas de mesas, dos mesões da madrugada, das salinhas e salões que eu tive o privilégio de conhecer desde pequena.
Para começar, a minha casa era um verdadeiro imã de gente interessante, já que a nossa pequena sala do Lido, em Copacabana, tinha que dobrar de estúdio de desenho, aparelho de oposição política, redação de jornal e sala de jantar. E, detalhe, meus pais nos deixavam circular livremente entre adultos, como os da turma do Pasquim, escritores, jornalistas, desenhistas, atores, músicos, diretores. Minha trajetória de cenógrafa e cineasta me proporcionou ainda a continuidade da convivência com pessoas engajadas em cultura e nos movimentos progressistas.
Escrever O Banquete não foi tanto criar diálogos, mas lembrar das conversas, do jeito engraçado e despretensioso de gente que, fora das quatro paredes, fazia a diferença na cultura, na política do país, mas que ali, protegida pela amizade, pelo álcool e privacidade, não se importava em ser desbocada.
Eu acho que a chave do projeto O Banquete é uma coisa assim: atores buscando um domínio sobre o diálogo que já é, de nascimento, familiar, corriqueiro, moldável pela experiência de cada um. (Praticamente não há fala que não tenha sido recriada pelos atores nos ensaios e durante a filmagem.)
O jantar, em O Banquete se passa em tempo real e filmá-lo foi uma experiência extraordinária. Planos-sequência de quase uma hora, sem intervalos, sem correções. A câmera em contínuo movimento de Inti Briones poderia focar qualquer um dos atores, a qualquer momento. No fundo da sala, um espelho de fora a fora, não permitia a qualquer um deles a mínima desconcentração: intensidade máxima.
O Banquete teve uma primeira versão há vinte anos atrás, como um texto para ser representado em volta de uma mesa, com a plateia logo atrás dos atores. Cheguei a fazer uns ensaios, mas o projeto não vingou. Foi o meu parceiro de Vazante, Beto Amaral, que em 2009 leu o texto e quis viabilizá-lo para o cinema. Sentiu-se como que projetado de volta para os jantares que acompanhou na sua infância e adolescência e empenhou-se ferozmente para levantar e realizar o projeto.
O tema de O Banquete é a dinâmica erótica entre homens e mulheres que usam a sedução como moeda de troca. Uma dinâmica que está sob intenso ataque agora, mas que, por outro lado, vive uma evidência só comparável talvez à publicação do clássico romance “Ligações Perigosas” no século dezoito na França. Sexo e poder estão na ordem do dia. Trump, Weinstein, as denúncias de assédio somando-se a cada dia por aqui, são a ponta do iceberg de milênios de disparidade entre os sexos.
Em O Banquete as mulheres são prósperas, inteligentes, cultas, capazes, no entanto deixam-se medir pela estima, pelo desejo que os homens têm por elas. Como – guardadas as devidas proporções – Medeias da tragédia de Eurípedes, dois mil e quinhentos anos depois. É interessante que eu venha a lançar o filme justamente num momento de intenso questionamento das dinâmicas entre os sexos. Sinto que pela primeira vez em séculos a hegemonia do desejo andro-euro-cêntrico – que nos trouxe de Medeia até aqui – está sendo abalada. E a militância feminista, dos movimentos identitários e de gênero está nos permitindo vislumbrar outras dinâmicas, outros sonhos para nós e para as novas gerações.
O Banquete pode ser visto, dentro dessa ótica, como um testamento de uma dinâmica de poder entre homens e mulheres que vicejou por muitas centenas de anos, mas que agora está em franca decadência. Como cineasta, sinto a necessidade e tenho o privilégio de deixar um testemunho, um retrato dos nossos tempos.
(Fonte: Em Branco Assessoria)
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