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O 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim gerava forte expectativa por se tratar do primeiro ano de um novo diretor artístico e chefe da curadoria: Carlo Chatrian, ao lado de Mariette Rissenbeek enquanto diretora executiva. O italiano, antigo diretor artístico do Festival de Locarno, prometia mudanças depois de mais de uma década sob o trabalho de Dieter Kosslick, criticado pela tentativa de trazer um aspecto pop e hollywoodiano à Berlinale.

Chatrian efetuou mudanças importantes dentro do evento. Primeiro, eliminou as mostras paralelas dedicadas ao cinema indígena e ao “cinema culinário” (esta última, injustificável), conhecidas como mais fracas e cujo apelo à imprensa era irrisório diante de dezenas de outros filmes mais fortes nas mostras concorrentes. Ele tratou de inserir os filmes feitos por indígenas em demais seções, assim como produções voltadas à gastronomia. O novo diretor artístico também extinguiu a anomalia da categoria “Em competição – fora de competição” das edições anteriores, rebatizando as sessões de gala dos filmes fora da busca pelo Urso de Ouro de Berlinale Specials.

 

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There Is No Evil

 

Menos estrelas e mais ousadia

Mais importante do que isso, tratou de dar novos rumos à mostra competitiva. A seleção 2020 representou uma das melhores da última década, por romper com alguns tabus típicos do festival europeu. Desta vez, não houve mais a “cota do único filme latino-americano” que costuma vigorar em Berlim e Cannes. Tanto o brasileiro Todos os Mortos quanto o argentino El Prófugo disputaram o prêmio principal, sendo ambos mais radicais do que a linguagem média dos selecionados europeus – seja pelo estilo estático e verborrágico do primeiro, seja pelo terror cômico e trash do segundo.

Além deles, Chatrian introduziu um documentário na competição – o controverso Irradiated, de Rithy Panh – e reduziu os filmes norte-americanos, privilegiando excelentes produções sem grandes nomes de Hollywood, como Never Rarely Sometimes Always e First Cow, ambos profundamente modernos e dirigidos por mulheres. Apenas o fraquíssimo The Roads Not Taken soou como uma concessão aos grandes estúdios, para garantir a mínima presença de atores do Oscar no tapete vermelho – no caso, Javier Bardem e Elle Fanning.

Ao invés de introduzir diversos filmes alemães que parecessem mais fracos que seus concorrentes, privilegiou as coproduções alemãs de alto nível – caso de There Is No Evil, vencedor do Urso de Ouro, feito em parceria com Irã e República Tcheca, e Siberia, coprodução com Itália e México. Com estas transformações, garantiu uma seleção mais inventiva, repleta de diretores disputando Urso de Ouro pela primeira vez. A seleção 2020 trouxe filmes menos dependentes de estrelas e mais dedicados à pesquisa de linguagem.

Enquanto Cannes busca se manter como a meca do cinema de autor clássico, e Veneza, devido à proximidade com o festival de Toronto e com o Oscar, tenta se tornar cada vez mais popular e americanizada, Berlim reencontra sob Chatrian a vocação de se tornar o festival menos eurocentrado, destinado a encontrar jovens vozes na América do Sul, na África e na Ásia, por exemplo. Conhecido como o festival mais político dos três, ele busca retomar uma política da produção e da forma cinematográficas, além da política enquanto tema das produções.

 

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Never Rarely Sometimes Always

 

Temas e tendências

Dentro da mostra competitiva, uma surpresa inicial surge diante da quantidade de filmes cuja imagem ostenta uma forte granulação, resgatando a textura da película que dominava o cinema na era pré-digital. Dez anos atrás, a discussão nos principais festivais se concentrava em torno da janela de produção – o scope contra a tela quadrada ou as janelas variáveis dentro do mesmo filme. Agora, a questão da textura se torna uma preocupação central na busca por um novo cinema.

Dos títulos selecionados, pelo menos seis deles – ou seja, um terço – traziam a imagem fortemente granulada, seja através da captação em 35mm, 16mm ou então por efeitos digitais simulando o ruído. Volevo Nascondermi, The Salt of Tears, First Cow, Delete History, Never Rarely Sometimes Always e DAU. Natasha constituíram o grupo que apostou na granulação enquanto linguagem, seja por compreender que a representação dos tempos antigos está associada ao registro da película, seja para atribuir um aspecto mais cru aos tempos contemporâneos (caso de Delete History e Never Rarely Sometimes Always, com histórias situadas nos tempos atuais).

Além disso, é curiosa a maneira como os contos, crônicas e fábulas têm se multiplicado nos grandes festivais, sinal de que nosso recurso ao lúdico diante da barbárie do mundo também provém de nova estrutura narrativa, capaz de conter o humor e o cinema de gênero. El Prófugo, The Salt of Tears, First Cow, Undine, Todos os Mortos, Siberia, The Woman Who Ran, Favolacce, Berlin Alexanderplatz, DAU. Natasha, Days e There Is No Evil se encaixam na estrutura do conto ou fábula, ao invés das narrativas mais tradicionais de My Little Sister e The Road Not Taken, por exemplo. Esses projetos abraçam o absurdo, o insólito e o impossível, como a hilária conversa entre vizinhos de The Woman Who Ran, a presença de “invasores” em El Prófugo e a história que se contradiz em Undine.

Os filmes de temática ostensivamente política foram minoritários, uma vez que a curadoria privilegiou a política das formas e dos modos de produção. No entanto, ainda foi um filme sobre política, ou seja, que a tenha como temática, aquele coroado pelo júri. There Is No Evil trabalha a pena de morte no Irã pelo ponto de vista dos homens encarregados de executarem os condenados. Começando pelo suspense e pela ironia, embarca no melodrama comum sobre os traumas nas vidas dos executores.

 

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Irradiated

 

Qual política?

Essa questão levanta o debate, sempre essencial, sobre a maneira como nos relacionamos com o cinema político e com a política no cinema – que são coisas distintas, e às vezes, praticamente opostas. Ao entregar o prêmio de melhor documentário a Irradiated, a integrante do júri declarou emocionada: “Obrigado, Rithy Panh, por nos lembrar como o ódio pode levar às guerras!”.

Ora, não seria óbvio dizer que guerras são ruins? Ou reformulando: um filme se torna ainda melhor por dizer que as guerras são ruins? Muito se debateu sobre a forma de Irradiated nos bastidores da Berlinale, questionando o uso de imagens choques na suposta necessidade de “passar uma mensagem”. Isso não parece ter afetado os jurados, que reconheceram no projeto o valor das boas intenções. Mas de que maneira essas intenções foram representadas? Não seria esta a verdadeira discussão que caberia em meios cinéfilos: o modo de retratar, ao invés do tema retratado?

Cada que se atribui ao cinema a tarefa de educar os adultos e as crianças, ele perde um pouco de sua vocação artística para se transformar em aula, panfleto, palestra. Esperamos das escolas, das famílias ou até das religiões, para quem as tenha, que tragam valores morais. A arte nunca precisaria ser útil para ganhar valor. Por isso, a afirmação comum de que um filme é “ainda melhor por tratar de um tema urgente” se torna tão problemática. De acordo com esta prerrogativa, ele possui valor antes mesmo de existir, porque sua temática o precede.

 

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Days

 

There is no evil (in gay love stories)

Esta reflexão se estende ao vencedor da 70ª edição, There Is No Evil. Muito bem produzido, filmado e atuado, ele parece ter sido beneficiado pelo contexto político que o cerca. Falou-se ostensivamente no fato que o diretor Mohammad Rasoulof está proibido de sair do Irã, e que os atores correm riscos de sanção por terem participado do filme. Em certa medida, o poder simbólico de premiar este filme parece tê-lo favorecido – ele soava mais “importante” e “urgente” do que os demais.

No entanto, talvez por ter sido o último filme exibido na competição, o vencedor gerou pouquíssimas discussões sobre a sua linguagem. De que maneira seus quatro episódios independentes se desenvolvem e se articulam entre si? Não seria estranho se passar do suspense inicial ao melodrama rumo ao final? Por que dois capítulos fornecem uma espécie de sequência um do outro, enquanto os demais são autônomos? Uma vez que o tema da pena de morte já foi explicitado e aprofundado, por que o quarto e último capítulo faria segredo de seu tema até o final da história?

Estas são apenas algumas das questões de ordem formal/estrutural que poderiam ser levantadas a partir de There Is No Evil. No entanto, não soaram tão importantes perto da defesa dos valores humanitários dentro de um regime opressor, e dos artistas que se colocam em risco para filmar, em nome da liberdade de expressão. Temos uma tendência estética a valorizar a dificuldade no cinema (vide o fetiche dos planos-sequência, da direção de arte em filmes de época etc.), e a tendência moral a valorizar o sacrifício dentro da atividade artística.

Até por isso, o belíssimo Days, história de amor entre dois homens, não recebeu prêmio algum. Sabia-se que, por ser radical demais na duração de seus planos e na condução narrativa, ele dificilmente formaria consenso para a premiação. Sempre é bom lembrar que se premia o “melhor filme consensual”, ou seja, aquele considerado bom por um maior número de membros do júri, algo que tende a desprestigiar obras controversas.

Histórias de afetos reprimidos, ou afetos contemporâneos, nunca soam tão urgentes quanto debates sobre violações de direitos humanos – basta ver que Toni Erdmann (2016) e Em Chamas (2018) também saíram sem um único prêmio do júri no Festival de Cannes, nos anos em que foram selecionados e aclamados. Não há problema algum em se valorizar obras ostensivamente políticas, o problema se encontra na crença de que sejam mais importantes que as demais, ou que a linguagem ousada e as relações humanas não possam constituir uma forma de política em si.

 

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Todos os Mortos

 

O Brasil da diversidade

Enquanto a Ancine entra na mira dos conservadores e o cinema nacional se torna campo de batalha ideológica do reacionarismo, os filmes brasileiros vão muito bem, obrigado, dentro da Berlinale. Além do número recorde de dezenove produções selecionadas, foi essencial a distribuição delas entre praticamente todas as categorias existentes.

Isso significa que tivemos filmes à altura de competir ao Urso de Ouro (Todos os Mortos), filmes fortes sobre a juventude na mostra Geração (Meu Nome É Bagdá, Irmã), títulos capazes de integrar a fortíssima mostra Panorama, conhecida por descobrir o talento de diretores jovens (vide Matias Mariani e o belo Cidade Pássaro) e produções de linguagem experimental na mostra Fórum (Vil, Má). Tivemos, como de costume, representatividade em imagens indígenas (Luz nos Trópicos) e LGBT (Vento Seco, Meu Nome É Bagdá). Ainda tivemos curtas-metragens, médias-metragens e videoinstalações.

É justamente no momento em que o Brasil se torna potência de uma forma de cinema ampla e de grande visibilidade que ele soa tão perigoso aos governantes – ou seja, ele não é atacado apesar de sua qualidade, mas por causa dela. Nosso cinema termina a 70º Berlinale com representatividade ímpar de temas e formas, além de ótima resposta crítica e de discursos potentes sobre a necessidade de fomentar a arte, estampados por seus criadores em debates e coletivas de imprensa. Ainda fomos premiados com Meu Nome É Bagdá e Los Conductos, duas obras de jovens diretores que não fazem concessões ao senso comum na hora de filmar.

 

Em 2020, o Festival de Berlim sublinhou o papel político inerente à seleção dos filmes, pela diversidade geográfica e pela redistribuição de mostras de modo a favorecer o cinema jovem e criativo. É ótimo que a política esteja na boca dos personagens, através de diálogos e temáticas. Mesmo assim, as produções deste ano nos lembram de que seus personagens de corpos grávidos (Never Rarely Sometimes Always), traumatizados (There Is No Evil), solitários (Days, The Woman Who Ran), mutilados (Berlin Alexanderplatz) e apaixonados (Days) também são profundamente políticos em si.

A textura das imagens, o enquadramento, a duração dos planos, a iluminação, o jogo cênico dos atores e dos cenários também constitui discurso e ponto de vista. Quanto mais abrirmos os olhos para a política enquanto experiência, e não apenas temática, maior será a importância de eventos como a Berlinale, e maior será a nossa fruição das obras.

 

 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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