Na manhã do dia 9, a Netflix promoveu um encontro entre a imprensa e os criadores de sua mais ambiciosa série brasileira até o momento: Irmandade, um retrato sobre o papel das facções criminosas dentro e fora das cadeias.
A personagem principal é Cristina (Naruna Costa), uma advogada que trabalha para o Ministério Público Federal, onde é respeitada pela postura profissional e ética. Quando se depara com a ficha criminal do irmão mais velho distante, Edson (Seu Jorge), e descobre que ele se tornou líder de uma facção na cadeia, ela não mede esforços para ajudá-lo. No entanto, as decisões de Cristina começam a burlar as leis, de modo que ela se torna cada vez mais próxima da Irmandade governada por Edson.
Escolhendo o ponto de vista
O diretor da série, Pedro Morelli, explica que a iniciativa partiu da Netflix, que ofereceu diversos temas à O2 Filmes, entre ele a questão das facções criminosas na cadeia. Morelli aproveitou a oportunidade, mas se questionou sobre o ponto de vista: “A abordagem mais esperada, e a menos bacana, era a de contar a série através de um policial tentando desvendar o caso. Depois veio a ideia de contar a trama pelo líder da facção, mas já vimos isso várias vezes. Então veio a ideia de uma protagonista mulher, um elo entre a parte de dentro e de fora da prisão”.
Esta escolha justifica o desenvolvimento da história nos anos 1990, época de crescimento do crime organizado e período pré-smartphones, “quando as mulheres eram fundamentais para passar mensagens para os prisioneiros”, explica Morelli.
Para Naruna, a ambiguidade moral de sua personagem foi determinante para aceitar o papel: “A ideia de justiça e do correto vai se desfazendo conforme ela encontra esta e outras realidades. As vivências não podem ser iguais, porque a sociedade brasileira é desigual”.
Sem certo, nem errado
Danilo Grangheia, intérprete de Andrade, o policial corrupto que busca combater a Irmandade através de métodos criminosos, concorda com esta postura complexa da série: “A ideia é borrar o certo e o errado, tirar o maniqueísmo. Temos um imaginário do que é mocinho e bandido, mas isso é apagado aqui. A gente começa a contestar e duvidar”.
Morelli acredita, inclusive, que os maus tratos aos detentos nas cadeias brasileiras foram um elemento fundamental para motivar o crescimento das facções criminosas: “A gente fez uma vasta pesquisa sobre a história das facções. Pegamos o conceito de facção, mas não nos inspiramos em nenhuma delas em particular. Todas elas nasceram porque existia uma opressão muito grande no sistema carcerário, com maus tratos e tortura diários. Então os presos se uniram para defender os direitos humanos, e chegamos onde chegamos. Se houvesse o mínimo de dignidade nas cadeias, não haveria facções. A estratégia [de gerenciar prisões desta maneira] é péssima, mas infelizmente ainda é defendida pelos governantes”.
Seu Jorge explica a responsabilidade de ter filmado na ala desativada de um presídio real, ao lado do edifício onde ficavam detentos de verdade. Ele, Lee Taylor e Pedro Wagner ressaltaram a mistura de pressão e incentivo por ter os prisioneiros assistindo às gravações de dentro de suas celas. “Representa nós!”, teria gritado um dos homens a Seu Jorge.
“Ali eu compreendi como era valiosa a liberdade”, explicou Seu Jorge, que ressaltou a diferença de poder sair daquele ambiente opressor ao final do dia, e voltar para casa. Ele buscou não apenas se aproximar dos presos reais, mas também de buscar dicas de colegas com experiência prisional, a exemplo do rapper Mano Brown, que lhe dizia: “Esses negócios, a gente não falava assim não”, possibilitando ao ator efetuar mudanças.
Lugar de fala
Irmandade buscou diversos especialistas para retratar o mundo das prisões, entre eles o diretor Aly Muritiba, responsável por três episódios, e carcereiro de formação. Morelli sabe que estava pisando num território delicado: “Eu tenho plena consciência de que sou um homem branco, e isso é um privilégio. Até por isso sinto quase uma necessidade de falar sobre as injustiças. Fiz questão de me cercar de pessoas que têm aquele lugar de fala, como o Aly e a Naruna. É um lugar de fala que eu não tenho”.
“O mais importante era não cair na furada de reproduzir estereótipos”, concorda Naruna, para quem sua experiência de mulher negra, originária da periferia, foi fundamental ao papel. Ela confessa ter dado várias sugestões ao diretor, que acatava a descrição sobre o subúrbio de São Paulo nos anos 1990. “O Pedro tem uma escuta muito grande, ele colheu estas experiências nossas. O audiovisual ainda tem poucos corpos negros, mas isso se tornou uma discussão entre a equipe. Nossos corpos são políticos”.
O jovem baiano Wesley Guimarães, que interpreta o irmão mais novo de Seu Jorge e Naruna Costa na série, concorda que este é um processo em andamento: “Estamos abrindo caminhos para outros atores negros depois de nós, assim como os nossos antepassados abriram o caminho para a gente”. Ele confessa que, enquanto jovem ator negro, sofreu muitas recusas em testes antes de ser escalado para uma série deste porte.
O esforço está na tela
Para a produtora Andrea Barata Ribeiro, Irmandade representa o fruto de imenso trabalho de profissionais do audiovisual: “Foram 280 pessoas trabalhando, e mais de quarenta locações, com destaque para o presídio. Foram 85 diárias de filmagem. Está na tela o valor de produção”.
A partir do dia 25 de outubro, a primeira temporada de Irmandade estará disponível na Netflix, desafiando o espectador a se posicionar do lado de um ou outro personagem neste xadrez de perseguições e jogos de poder. Como afirma Seu Jorge, “O caminho certo é um caminho sem volta”, ao que Wesley Guimarães completa: “Mas o que é certo para mim pode não ser certo para você”.
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