O pequeno aceno da presidência da república à classe artística durou muito pouco. Logo após aprovar a Cota de Tela para 2020, que garante um mínimo de dias em que as salas de cinema são obrigadas a exibir filmes nacionais, Jair Bolsonaro criticou novamente o cinema brasileiro em suas redes sociais, nesta quinta-feira, dia 26.
“Obviamente que, fazendo bons filmes, não vamos precisar de cota mais. Há quanto tempo a gente não faz um bom filme, não é? Vamos fazer filmes da história do Brasil, da nossa cultura e arte, que interessa a população como um todo e não às minorias”, relata a Folha de São Paulo. O presidente afirmou que a produção audiovisual não deve abordar “a questão da ideologia”, e defendeu uma releitura positiva sobre a ditadura militar no cinema:
“Os filmes que estamos fazendo a partir de agora não vai ter mais (sic) a questão de ideologia, aquelas mentiras todas de histórias passadas, falando do período de 1964 a 1985. É sempre fazendo a cabeça da população como se esse pessoal da esquerda foi o mais puro, ético e moral do mundo. E o resto como se fosse o resto”. Bolsonaro ainda defendeu que o cinema não disponha mais de recursos públicos.
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O argumento é falacioso por diversos motivos. Primeiro, porque o sucesso ou fracasso de um filme está longe de depender apenas de seus méritos artísticos: com a fraca regulamentação do mercado, nenhuma produção nacional de orçamento modesto consegue competir com blockbusters norte-americanos que ocupam uma imensa maioria de salas, dispondo de recursos muito superiores de promoção.
Segundo, porque o ataque é disparado ao fim de um ano excepcional para o cinema brasileiro, quando Bacurau, A Vida Invisível, Temporada, No Coração do Mundo, Sócrates, A Febre, Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, entre outros, foram selecionados e aclamados nos principais festivais do mundo, sem falar numa excelente produção de curtas-metragens. Além disso, e talvez acima de tudo, não compete à presidência da república se posicionar enquanto crítica da produção cinematográfica.
Terceiro, a tentativa de sufocar filmes “que agradem às minorias” corresponde a uma forma de censura: o governo não pode escolher quais obras podem ou não ser produzidas – motivos pelos quais existem órgãos independentes, como a Ancine, para regulamentar a indústria nacional. Quarto, a insistente retórica do “fim da ideologia” aponta apenas para o cerceamento das ideias contrárias àquelas do governo: a partir do momento em que se defende abertamente uma produção de cunho religioso, e pró-ditadura, o posicionamento ideológico se torna evidente.
O ano de 2019 termina ainda mais amargo para os produtores e profissionais do audiovisual, que atravessaram um período excepcional em termos de visibilidade no exterior, e importante em termos econômicos, apenas para se depararem com perspectivas sombrias para 2020. Mesmo assim, o início do próximo ano relembrará a qualidade da nossa produção: os festivais de Roterdã e Berlim já incluíram quantidade expressiva de filmes brasileiros entre os selecionados de suas novas edições.
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