Em 2020, o grande vencedor da Mostra de Cinema de Tiradentes foi um filme de terror, povoado por fantasmas. Canto dos Ossos, de Jorge Polo e Petrus de Bairros, aborda a adolescência LGBT lutando contra um sistema opressor. No entanto, poucas edições da Mostra foram tão acolhedoras às histórias de fantasmas quanto a 24ª, que exibiu, ironicamente, poucos filmes de horror.
Talvez a pandemia de Covid-19 e a política de desmonte cultural praticada pelo governo Bolsonaro nos preparasse para uma seleção ainda mais assertiva politicamente, com projetos de denúncia frontal aos sistema corroído. Mero engano: seja pelo leque de filmes disponíveis, seja pelo recorte efetuado por parte dos curadores, o ano de 2021 trouxe obras surpreendentemente carinhosas.
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A política dos afetos e reencontros se sobrepôs à denúncia direta de nossas mazelas. Talvez precisemos, em primeiro lugar, nos reconectar uns com os outros antes de passarmos à organização coletiva contra um adversário em comum. Certo, estavam presentes os temas do aborto (em Kevin), da ditadura militar (em O Cerco, Voltei!), da escravidão (Negro em Mim, Subterrânea), do abandono familiar (Rosa Tirana, Passagem Secreta) e do genocídio indígena (Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra É Nossa!). No entanto, os criadores procuraram, em geral, alternativas poéticas para abordar estas questões. Talvez este traço seja perceptível em igual medida nos curtas-metragens que, infelizmente, não conseguimos priorizar.
Houve uma quantidade impressionante de longas-metragens próximos do universo infantil e familiar, em Kevin, A Mesma Parte de um Homem, Rosa Tirana, Açucena e Passagem Secreta, por exemplo. Foi comum os cineastas se colocarem em cena, tanto em ficções quanto nos documentários, criando pontes mais evidentes entre cineastas e personagens – em Ostinato, Eu, Empresa, Amador, Kevin, Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó), #eagoraoque e Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra É Nossa!. A subjetividade foi posicionada em primeiro plano, num gesto fundamental após um ano de distanciamento e precariedade social.
Curiosamente, dentro de obras ternas e intimistas, os fantasmas se tornaram um elemento frequente para representar o medo e o desejo em relação ao outro. Em A Mesma Parte de um Homem, um forasteiro misterioso surge para substituir o marido morto. Em Rosa Tirana, uma garotinha parte Brasil afora em busca da imagem de uma santa, convertida no espírito da mãe falecida. Açucena se constrói inteiramente a partir de uma mulher invisível, imersa em clara atmosfera de terror.
Já Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra É Nossa! aborda, da primeira a última cena, os parentes mortos dos protagonistas, e Voltei! literalmente resgata a irmã do além. A jovem Alice é assombrada pelo avô em Passagem Secreta, enquanto o protagonista de Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó) efetua uma jornada edípica após assassinar os pais conservadores. A diretora Joana Oliveira carrega consigo a sombra de um bebê desejado, porém perdido num aborto espontâneo em Kevin, e Mirador confronta uma família ao desaparecimento súbito da mãe. Por fim, O Cerco aborda a história de uma professora visitada pelos fantasmas que ocupavam sua casa.
Embora os projetos de filmes tenham nascido muito antes da pandemia, eles se convertem em retratos de nossa dificuldade de lidar com tantas perdas de pessoas próximas para a Covid-19. Além disso, expressam o desejo de contato, reencontros e de convivência. A maioria das narrativas de longas-metragens se concentrou dentro das casas dos personagens, palco tanto do angústia quanto do reconforto.
A fantasmagoria se estende à nossa relação com os meios digitais, sobretudo no caso de um festival online. Tiradentes, um dos eventos mais calorosos em termos de proximidade entre espectadores e criadores, perdeu parte da interatividade e imersão devido ao distanciamento. No entanto, permitiu que pessoas de todo o Brasil assistissem a obras de difícil acesso dentro do circuito comercial.
As cerimônias de apresentação e encerramento transpareceram a fragilidade da comunicação digital, algo comum a eventos virtuais de qualquer porte, e conhecidos por qualquer indivíduo que tenha ministrado ou acompanhado cursos durante a quarentena. O som falhava, a imagem travava, a voz encontrava eco distante. “Está me escutando?”, “Desculpa, mas o seu som travou”, foram frases comuns.
Os organizadores fizeram muito bem em efetuar entrega de prêmios ao vivo e manter os debates através de telas. No entanto, ainda foram prejudicados pelas limitações destes dispositivos. Que sirvam de prova ao fato que estes suportes constituem uma excelente alternativa aos tempos em que vivemos, mas jamais substituirão a experiência física e interativa do cinema coletivo, dentro da tenda de Tiradentes.
2021 se conclui como uma edição de filmes delicados sobre pessoas queridas que não vemos mais. O vencedor da edição, o documentário baiano Açucena, se encaixa neste perfil – vide o carinho da maioria da imprensa em relação a esta personagem invisível. Voluntariamente ou não, foi consagrada uma obra que dialoga com as angústias de sujeitos solitários, transbordando de afeto represado.
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