Não Vamos Pagar Nada :: Equipe apresenta a comédia com mensagem social

Publicado por
Bruno Carmelo

Antônia (Samantha Schmütz), uma mulher desempregada, descobre que os preços do único supermercado do bairro aumentaram tanto que ela não tem mais condição de comprar produtos básicos. A situação parece familiar? Embora reflita muito bem a crise no Brasil de 2020, a comédia Não Vamos Pagar Nada (2020) é baseada numa peça de teatro italiana de 1974, escrita por Dario Fo. O diretor João Fonseca parte dessa premissa para avaliar o ato de rebeldia das mulheres da região, que roubam os produtos do mercado e depois precisam se esconder da polícia.

O filme, que chega dia 8 de outubro em cinemas selecionados, e dia 15 de outubro no streaming do Telecine e no Telecine Premium, leva o diretor da série Vai que Cola (2013 -) aos longas-metragens pela primeira vez. O elenco traz grandes nomes da comédia: Edmilson Filho como o marido da protagonista, Flávia Reis no papel de Margarida, a melhor amiga de Antônia, Fernando Caruso e Flávio Bauraqui como dois policiais, e Leandro Soares como o marido de Margarida, além da participação especial de Criolo.

Na manhã de 6 de outubro, a imprensa assistiu à comédia e participou de uma coletiva de imprensa virtual com o elenco. Confira alguns bons momentos deste bate-papo:

 

O diretor João Fonseca (em destaque). Foto: Helena Barreto.

 

O primeiro filme de João Fonseca

Embora seja um experiente diretor de teatro, Fonseca nunca tinha dirigido um longa-metragem antes. “Só agora eu fui chamado, porque minha carreira foi sempre ligada ao teatro. Eu adoraria ter feito um filme antes, mas isso não aconteceu. Acabou vindo na hora que precisava”, explicou. “Como é meu primeiro filme, misturei grandes talentos e grandes amigos com quem não tinha trabalhado ainda”.

O entrosamento entre a equipe é evidente, devido à experiência em Vai que Cola. Samantha Schmütz também participou do processo criativo: “O João escolheu a primeira vez dele comigo, e a primeira vez precisa ser muito especial. Eu quis participar de toda a escolha, dar opiniões e pensar em tudo que fosse melhor para o filme. Ele me deu essa abertura”. Foi a atriz, inclusive, que sugeriu Flávio Bauraqui para o papel de um policial com consciência crítica sobre sua profissão. Os dois se conheciam desde o trabalho no espetáculo Elis: A Estrela do Brasil (2002).

O elenco garante que a escolha de um veterano do humor teatral foi determinante para o trabalho dar certo: “No Vai que Cola, existia um espaço muito curto para lançar cada episódio. Era um dia de ensaio para um dia de gravação, o que gerava um caos. Mesmo assim, o João tinha calma para que o humor não se perdesse no meio disso. Ele conseguiu traduzir este estilo muito bem no cinema. Se ele não tivesse dito que era o primeiro filme dele, eu não teria descoberto”, garante Fernando Caruso.

“O João é um diretor que ri durante as filmagens”, explica Flávia Reis. “Quando tinha algum barulho no set, era o João rindo. Um diretor de comédia que se diverte filmando é excepcional”. O cineasta confirma: “Eu estraguei vários planos. Sou um admirador de talentos e de atores, e é muito gostoso ver como eles resolvem as cenas. Para fazer comédia, é preciso ter um clima que permita a diversão”.

 

Samantha Schmütz e Edmilson Filho. Foto: Helena Barreto.

 

Amigos reunidos

Não faltaram provocações amigáveis entre os atores. “A Samantha só virou protagonista porque a Tatá Werneck não estava disponível, e procuraram uma substituta em termos de estatura. Temos uma protagonista curta-metragem para um longa-metragem. O João tinha que ficar mudando o ângulo de lente, porque a Samantha é menor que as pessoas”, brincou Caruso.

“A gente formou uma dupla muito boa, eu nem imaginava”, explica Reis a respeito da protagonista. “A Samantha reage a qualquer coisa que acontece no set. O que ela faz como Antônia não é a mesma coisa que faz com a Jéssica, por exemplo. Ela é muito espontânea. No meu caso, a Margarida passa quase o tempo inteiro gemendo, chorando e reagindo. Quando acabou, eu duvidei e perguntei: ‘João, deu certo mesmo?’. Mas teve uma construção de dupla cômica: conseguimos criar a Antônia mais decidida, enquanto a Margarida é mais perdida”.

Edmilson Filho, de Cine Holliúdy (2012) e O Shaolin do Sertão (2016), garantiu que a mudança do Ceará para um set de filmagem no Rio de Janeiro trouxe um efeito significativo: “Como a gente já tem uma relação de amizade, fica fácil porque a gente entende o tempo do outro. Eu me senti o ‘barriga branca’. Lá no Ceará, esse é o cara que faz tudo o que a mulher quer. Para mim, foi uma experiência diferente gravar tanta coisa em estúdio. Eu sou do Ceará, estou acostumado a gravar com o sol na cabeça. O fato de não estar no sol me ajudou a render mais. E Bauraqui é engraçado pra caramba. Ele tem que entrar no Vai que Cola! João, dá uma vaguinha pra ele!”, provocou.

De fato, o “novato” do grupo recebeu diversos elogios: Bauraqui é um ator massinha”, explica Schmütz. “O diretor molda e faz dele o que quiser. Ele é um ator muito completo. Essa sintonia pessoal, de amizade, só favorece o filme. Humor é jogo. Se eu jogar tênis com o Guga, não vai dar certo, porque eu não vou saber jogar. A experiência prévia de jogo é fundamental. Esse filme depende muito do texto e do ator”.

 

Flávio Bauraqui. Foto: Helena Barreto.

 

Improvisos e adaptações

Em uma cena de Não Vamos Pagar Nada, Samantha Schmütz canta a “Oração para Santa Eulália”, um disfarce usado por sua personagem para enganar um policial (Caruso) prestes a descobrir o roubo do mercado. No entanto, havia apenas uma letra escrita, já a melodia foi criada em plena gravação pela atriz principal, sem avisar o resto da equipe. Flávia Reis, companheira de cena, precisou se adaptar.

“A Samantha inventou a música na hora, aquilo não existia!”, reforça o diretor. “Por incrível que pareça, a Flávia conseguiu acompanhar a canção, porque a personagem inventou algo e a outra tinha que fingir que já conhecia. Isso é de um refinamento cômico impressionante. Depois, a musiquinha da Santa Eulália se tornou um hit na nossa cabeça. A Samantha ainda vai lançar no Spotify!”. Caruso aproveita a deixa: “Esse é um novo gênero, a comédia musical improvisada!”.

De fato, o filme se conclui com um grande número musical envolvendo todo o elenco. Esta foi outra ideia elaborada às pressas, e abraçada por toda a equipe: “Foi uma loucura minha depois que fui ao show do Caetano. Ele cantava ‘Gente’, e eu pensei que seria ótimo se a gente fizesse um número musical, despretensioso, no final do filme. Eu contei isso aos produtores com vergonha, porque a gente não tinha tempo nem orçamento para isso. Para a minha surpresa, eles compraram a ideia. Fizemos isso na madrugada do último dia de filmagem. Foi uma loucura”, confessou Fonseca.

O elenco aproveitou para cutucar a pouca afinidade de Edmilson Filho com a dança. O ator se justifica: “Tinha um pessoal participando que vinha do balé. Eram profissionais. Nos ensaios, o coreógrafo ensinava os passos e todo mundo reproduzia bem. Eu sou muito corporal, mas eu não prestava atenção porque olhava os outros se mexendo. No final, quem me salvou foi o nosso diretor de fotografia, que só enquadrava a parte boa!”.

 

Flávia Reis e Leandro Soares. Foto: Helena Barreto.

 

Comédia com uma mensagem

A equipe garante que, por lidar com a alta dos preços e a miséria do povo, Não Vamos Pagar Nada se torna um filme complexo e atual: “É inacreditável que ninguém tivesse trazido essa peça antes, que foi montada em quase todos os países e línguas. É uma comédia sociopolítica, meio anárquica e absurda, e adequada ao Brasil”, garante o diretor.

Ele continua: “A comédia do Dario Fo sempre tem uma tragédia por trás. A fome é a tragédia, e todos eles sofrem com essa tragédia interna. É óbvio que esta é uma grande farsa, uma brincadeira, mas todos os personagens passam por essa tragédia. Quis colocar isso de maneira muito forte. Abrir o filme com a Samantha olhando a foto de uma comida que ela não pode comer é o retrato do filme. As pessoas não têm acesso ao mínimo, ao básico”.

“A comédia está sendo feita, mas do lado certo”, pondera Caruso. “Ninguém está ironizando as pessoas nessa situação, muito pelo contrário, estamos defendendo. Esse é o tipo de comédia que eu mais gosto, porque ela é eficaz tanto na crítica social quanto no humor. Ele não fica só na lição: a comédia também funciona muito bem. Um filme capaz de juntar esses dois pilares com tanta habilidade precisa ser comemorado”.

Leandro Soares, que também é autor e dramaturgo, explicita sua interpretação política: “A gente fala muito em atualidade de obra. Mas a obra de Dario Fo é capaz de ser universal e contemporânea a qualquer tempo. Em qualquer cenário de opressão e fome, ela é identificável. O nosso país desceu a ladeira, e a alta dos preços realmente aconteceu. Não é preciso um país estar em crise para perceber a grandeza do texto, mas estando em crise como agora, podemos compreender melhor o contexto. Não conto isso com alegria. As pessoas disseram: ‘Vamos votar no Bolsonaro, porque senão o Brasil vai virar uma Venezuela. Mas é hoje que a gente parece uma Venezuela”.

Depois de se lembrar de diversos colegas de televisão, teatro e cinema que passam por graves dificuldades financeiras devido à pandemia, Samantha Schmütz conclui: “É muito melhor fazer uma comédia com causas nobres e justas, e não puro entretenimento. O meu desejo como uma artista, na música e nas artes cênicas, é unir a arte ao discurso”.

 

Samantha Schmütz. Foto: Helena Barreto.

 

Lançamento online

Não Vamos Pagar Nada tem um lançamento atípico, ao mesmo tempo em plataformas digital (caso do Telecine) e nos cinemas, ainda em tímido processo de reabertura. Caruso explicitou o sentimento geral da equipe: “Comédia é uma arte coletiva. Tudo o que eu mais queria era que o filme estivesse nos cinemas, para ver as pessoas rindo. Estou aqui para dizer que este filme vale a pena. Estamos reabrindo os cinemas com cuidado para entender como funciona. As plataformas digitais também cumprem um papel fundamental. Tem muitos trabalhos em que a gente só bate o ponto, mas em alguns casos, a gente termina muito orgulhoso do que fez. Este é claramente um desses casos. Espero que o pessoal compre a briga desse filme para que a gente retome o hábito da cultura”.

Fonseca concorda: “Eu adoraria estar escondido numa sala de cinema, vendo a reação das pessoas. Mas estou muito feliz do jeito que está”. Caruso provoca: “Se todo mundo que estiver vendo o filme puder gravar a reação para mandar ao João, por favor façam isso!”.

“Se fosse numa época normal, com as pessoas no cinema, sei que elas sairiam felizes”, garante Edmilson Filho. “Agora, elas vão ficar felizes em casa. Espero que a gente consiga, enquanto artistas, entregar ao nosso público esta alegria através do cinema nacional”, afirma. Ele já imagina o futuro para esta história: “Vou lançar o desafio: essa história é tão boa que poderia ter uma parte 2”. Quem sabe?

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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