20200325 spcine destaque

O Spcine Play é uma plataforma relativamente nova, com algumas particularidades interessantes: primeiro, a dedicação majoritária ao cinema brasileiro, o que vai desde os grandes clássicos até ficções e documentários recentes. Segundo, a parceria com grandes festivais como a Mostra de São Paulo, o É Tudo Verdade, o In-Edit e a Mostra do Audiovisual Negro, o que significa que diversas preciosidades, muitas delas sem passagem pelo circuito comercial, se encontram disponíveis para streaming.

Durante a quarentena visando diminuir os impactos do Covid-19 (escute as autoridades de saúde, permaneça em casa se puder!), o Spcine Play disponibilizou todo o seu catálogo gratuitamente durante 30 dias. Esta é uma oportunidade única de descobrir o trabalho de Helena Ignez, Lúcia Murat, Andrea Tonacci, Ana Carolina, Hector Babenco, Tata Amaral

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20200325 robledo

Robledo Milani (Editor-chefe)
O Rei da Noite (1975) / Heartstone (2016)

Um dos raros lugares onde é possível conferir o primeiro longa ficcional do saudoso Hector Babenco é na plataforma de streaming da Spcine Play: O Rei da Noite, lançado em 1975. Essa crônica de costumes da boemia paulista nos anos 1940 é estrelada por dois dos maiores artistas que o cinema brasileiro já conheceu: Paulo José e Marília Pêra. Ele, aliás, foi premiado como Melhor Ator no Festival de Brasília pelo seu desempenho como Tezinho, um homem de família burguesa, legítimo filhinho da mamãe que nunca teve que se esforçar na vida. Entre uma noiva prometida e todas as mulheres que a cada noite ele conquistava nas ruas, acaba se apaixonando por Pupe (Pêra, em grande momento), uma prostituta e cantora de cabaré que acaba se envolvendo de modo irremediável pelo charme do rapaz. Em estrutura episódica, é retrato de uma época que o cinema nacional não mais consegue reproduzir, mas que, mesmo assim, deixa saudades fundas. Por isso mesmo, merece ser reverenciado com entusiasmo. Leia a nossa crítica.

Uma verdadeira pérola do cinema islandês, tão pouco conhecido no Brasil, é o drama Heartstone, que chegou a ser exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo antes de uma breve passagem pelos cinemas. Agora, portanto, é o momento de recuperá-lo. Premiado no Festival de Veneza com o Leão Queer (melhor filme de temática LGBT), narra a história de amizade de dois adolescentes, Thor e Christian, durante um turbulento verão em que verão todas as suas crenças serem colocadas à prova, ao mesmo tempo em que vão percebendo o surgimento de outros sentimentos um pelo outro. Trabalho de estreia do diretor Guomundur Arnar Guomundsson – e, até hoje, seu único longa – ganhou mais de trinta prêmios ao redor de mundo, além de ter somado outras dezenas de indicações. Uma história forte, de grande peso dramático, que ainda oferece a oportunidade de desvendar cenários incrivelmente belos e bastante raros por aqui. Leia a nossa crítica.

 

20200325 marcelo

Marcelo Müller (Editor)
Que Bom te Ver Viva (1989) / Já Visto Jamais Visto (2013)

É muito importante que reconheçamos não apenas os nossos artistas, o cinema pungente feito no Brasil, mas também, e urgentemente, a parcela feminina dos criadores que nos enchem de orgulho por meio da Sétima Arte. Lúcia Murat, uma de nossas cineastas mais atuantes e veteranas, fez com Que Bom te Ver Viva um filme imprescindível dentro de um filão bastante específico, o debruçado sobre os efeitos nocivos e indeléveis das políticas vigentes durante os 21 anos em que fomos governados pela Ditadura Civil-Militar. No filme, uma mistura instigante de ficção e documentário, Irene Ravache surge como uma militante outrora vilipendiada pelos militares, de certa forma sintetizando o discurso de várias mulheres que oferecem suas histórias verídicas a fim de montar um painel aterrador, mas de conhecimento urgente, dos procedimentos desumanos dos milicos e afins. Principalmente na contemporaneidade, com alguns teimando em relativizar a sombra histórica da ditadura, Que Bom te Ver Viva é um filme de enorme valor entre os disponíveis no Spcine Play.

Cineasta italiano radicado no Brasil, infelizmente já falecido, Andrea Tonacci teve uma participação importante no período chamado de Cinema Marginal. Seu clássico Bang Bang (1970) – também disponível no Spcine Play – é frequentemente listado como um dos principais expoentes do movimento também alcunhado Cinema de Invenção. Tonacci, diante das vicissitudes do nosso circuito produtor/exibidor, teve uma carreira bissexta, finalizando poucos longas-metragens, Já Visto Jamais Visto é seu testamento, um suspiro final que utiliza justamente essa dificuldade, amalgamando trechos de filmes inacabados, exemplares acabados, de nunca lançados comercialmente, de vídeos caseiros, numa mistura cuja intenção é proporcionar uma reflexão complexa e, ao mesmo tempo, afetuosa da importância do registro audiovisual, inclusive como forma de filtrar diversas experiências humanas e transformá-las em arte. A matéria-prima principal do filme é o passado, os estilhaços do que já passou, numa construção poética em que imagens e sons são equivalentes às letras de um poema de amor. Leia a nossa crítica.

 

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Francisco Russo (Editor)
A Gangue (2014) / Vou Rifar meu Coração (2012)

Imagine um filme inteiramente falado através da linguagem de sinais e sem qualquer legenda. Este drama ucraniano encampa esta proeza, oferecendo ao espectador uma experiência narrativa impressionante na qual o som do silêncio surge com uma incrível potência. Bastante tenso e sem se preocupar com o politicamente correto, trata-se de um baita filme que merece ser descoberto. Leia a nossa crítica.

Vou Rifar meu Coração representa um mergulho pelo coração da música brega brasileira, seja a partir de depoimentos de seus ícones, com direito a vários causos, ou mesmo de fãs ardorosos deste estilo musical. A diretora Ana Rieper entrega neste documentário um panorama bem competente sobre o tema, se preocupando mais com o que o ritmo representa para a alma brasileira do que propriamente em seguir as regras habituais de docs musicais. Leia a nossa crítica.

 

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Bruno Carmelo (Editor)
O Despertar das Formigas (2019) / À Meia-Noite Levarei sua Alma (1964)

Coprodução entre Costa Rica e Espanha, O Despertar das Formigas esteve recentemente nos cinemas brasileiros, onde ficou por pouco tempo em cartaz. Caso tenha perdido a oportunidade de vê-lo, vale descobrir o imenso talento da diretora Antonella Sudasassi Furnis ao abordar a discreta emancipação de uma dona de casa. Isabel cuida das crianças, faz a comida, a faxina, e ainda tem que satisfazer os desejos sexuais do marido. Aos poucos, cansada desta rotina, começa a ter pequenos delírios, percebidos apenas por ela – e pelo espectador – apontando a uma possibilidade de mudanças. Uma maneira delicada, e ainda assim forte, de falar sobre a opressão feminina. Leia a nossa crítica.

Falecido em fevereiro de 2020, José Mojica Marins, o famoso Zé do Caixão, representou um dos nossos maiores cineastas, não apenas do gênero terror, mas do cinema brasileiro como um todo. A aparência exótica o levou a ser considerado popularmente como um cineasta trash, mas os fãs que se debruçam sobre a cinematografia de Mojica descobrem um uso de luz e de som impressionantes, fruto de um artista com grande conhecimento de linguagem cinematográfica. O Spcine Play traz nada menos que dez obras do cineasta, incluindo À Meia-Noite Levarei sua Alma, que brinca com a obsessão masculina pela mulher perfeita. Leia a nossa crítica.

 

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Victor Hugo Furtado (Redator)
Um Céu de Estrelas (1996) / Quase Dois Irmãos (2004)

Hoje reconhecida como uma das mais exitosas cineastas de sua geração, Tata Amaral iniciou sua trajetória em longas com um drama baseado num conto de Fernando Bonassi. Dessa empreitada, surgiu Um Céu de Estrelas – obra crua, mas também de forte cunho fraternal para as mulheres que o assistirem. O drama, exibido nos conceituados festivais de Berlim, Toronto e Havana, apresenta a história da humilde moça paulistana Dalva (Leona Cavalli), que tem a chance de viajar aos EUA em busca de uma vida melhor. Entretanto, é impedida pelo namorado machista Vítor (Paulo Vespúcio) – que, com agressividade, a tranca em casa e ameaça de diversas formas. Na visão de Tata, ancorada na fotografia de Hugo Kovensky, sentimos um forte clima de tensão e asfixia. Com uma narrativa quase thriller, a obra cai como uma luva em meio aos temas discutidos na atualidade.

A outra escolha também saiu da mente de uma cineasta: Quase Dois Irmãos (2004) – que é frequentemente lembrado como o melhor filme de Lúcia Murat. Aqui, temos diferentes lados da mesma moeda, pois Caco Ciocler é um senador e ativista político e Flávio Bauraqui, um poderoso traficante de drogas do Rio de Janeiro. Em três tempos narrativos distintos e intercalados, a trama leva ambos – antes amigos de infância – para o insólito sistema carcerário do nosso país, mesmo que seus objetivos sejam totalmente diferentes. Ponderadamente, o longa questiona as bases da meritocracia no Brasil e a perseguição política nos tempos da Ditadura.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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