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Nas últimas semanas, o projeto de Lázaro Ramos como diretor recebeu algumas das críticas mais calorosas em festivais internacionais, além do prêmio de melhor roteiro no Indie Memphis Film Festival. Isso despertou atenção do governo federal a Medida Provisória (2021), filme ainda inédito que imagina um recurso do Congresso para enviar brasileiros negros à África, em resposta às propostas progressistas de reparação pelo histórico escravista.

Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares e crítico ferrenho a propostas de inclusão e reparação histórica a negros, tomou a dores da presidência ao acusar o projeto em suas redes sociais: “O filme, bancado com recursos públicos, acusa o governo Bolsonaro de crime de racismo — deportar todos os cidadãos negros para a África por Medida Provisória. Temos o dever moral de boicotá-lo nos cinemas. É pura lacração vitimista e ataque difamatório contra o nosso presidente”.

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Lázaro Ramos dirige Adriana Esteves em Medida Provisória

 

Há inúmeros problemas nesta curta afirmação. Primeiro, Camargo não assistiu ao filme, sendo incapaz de julgar sua qualidade e conteúdo. Segundo, sugerir em tom de acusação que uma obra “foi bancada com recursos públicos” significa ignorar que no Brasil, assim como em todos os países democráticos, investe-se em cultura para que as obras sejam oferecidas ao público. Além disso, nenhum governo assina cheques em branco aos artistas. Há controle rígido e extremamente burocrático de verbas destinadas ao cinema – quando são destinadas ao cinema.

Terceiro, trata-se de uma obra de ficção – uma distopia, nas palavras do diretor. No universo da ficção, personagens podem agir como bem entendem, o que vai de presidentes buscando fazer amizade com alienígenas inimigos (em Marte Ataca!, 1996) à promoção de um Big Brother mortal para a diversão da população empobrecida (em Jogos Vorazes, 2012 – 2015). É provável que Medida Provisória constitua uma crítica a governos autoritários, e se for o caso, este será um direito constitucional do artista em propor esta metáfora e esta mensagem. Conforme Lázaro Ramos lembra ao UOL, o texto do filme surgiu muito antes de Jair Bolsonaro se tornar candidato à presidência:

“Sobre o filme falar do governo atual, devo dizer que ele foi escrito em 2015 e filmado em 2019. É baseado no espetáculo teatral Namíbia Não de Aldri Anunciação, realizado em 2011 – ele começou a ser concebido já no ano seguinte, em 2012. É um filme distópico assim como várias obras realizadas na última década, a exemplo de tantos como Handmaid’s Tale e Black Mirror. Qualquer comentário sobre o filme é feito em cima de suposições ou desejo de polêmica, pois ninguém assistiu à obra a não ser quem esteve nos festivais onde o filme foi exibido com extremo sucesso vide as mais de 24 críticas positivas da obra”, explicou.

 

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Marighella, que também traz Seu Jorge e Adriana Esteves no elenco

 

Por um lado, existe a tendência a festejar este tipo de ataque gratuito de Sérgio Camargo, por constituir propaganda gratuita do filme – agora, muito mais pessoas sabem da existência do projeto. Por outro lado, manifestações do tipo podem de fato prejudicar o lançamento de uma obra. O exemplo mais flagrante de campanha persecutória se encontra em Marighella (2019), ótimo filme de Wagner Moura, aclamado no Festival de Berlim, porém jamais lançado nos cinemas brasileiros. Neste caso, igualmente, os detratores pediam boicote a um filme que não tinham visto.

Ao menos, em seu longa-metragem distópico, Lázaro Ramos demonstra a capacidade de tomar a temperatura de sua época, oferecendo um diálogo com a realidade presente – e este aspecto pode ser deduzido apenas das falas do criador e das críticas escritas a respeito, já que o Papo de Cinema, assim como Camargo, ainda não viu o filme. (Mas a ansiedade é grande).

Vamos esperar que o resultado chegue ao público o quanto antes, para cada um tirar suas próprias conclusões. Em paralelo, quem sabe os membros do governo não voltam a criticar Marighella, para ele finalmente ganhar data de lançamento? Vale lembrar que Medida Provisória é estrelado por Taís Araújo, Alfred Enoch, Renata Sorrah, Seu Jorge e Adriana Esteves.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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