Uma lacuna histórica sempre intrigou pesquisadores do audiovisual: em paralelo aos estudos crescentes sobre o papel de artistas negros no desenvolvimento da sétima arte, e das produtoras e diretoras mulheres, ainda existem poucas publicações a respeito das primeiras mulheres negras a dirigirem filmes. A publicação The Philadelphia Sunday, dedicada a “conectar a comunidade afro-americana da Filadélfia”, em suas palavras, dedicou uma matéria a respeito.
A busca pela primeira realizadora negra de todos os tempos não é fácil, por diversos motivos. O primeiro deles diz respeito ao apagamento histórico de pessoas negras: seus feitos foram deturpados, apagados ou destruídos ao longo dos anos. Em se tratando de cinema, diversas produções das primeiras décadas do século XX se perderam, seja pela precariedade do material utilizado na época, seja pela pequena importância atribuída a obras que, 120 anos atrás, ainda não eram socialmente consideradas como obras de arte com status comparável àquele de livros ou peças de teatro.
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Por estes fatores, o título de primeira cineasta negra gera discordâncias. Para alguns, a pioneira seria Madame E. Touissant Welcome (imagem em destaque acima), nascida Jennie Louis Van der Zee. Existem registros de que ela dirigiu um longa-metragem retratando o retorno de soldados negros da Primeira Guerra Mundial, cujo término foi decretado em novembro de 1918. No entanto, o filme foi destruído. Não resta qualquer catalogação do título, duração ou formato (ficção/documentário).
Alguns veículos estimam que A Woman’s Error (1922), de Tressie Souders, foi o primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher negra, porque o marketing da época propagandeava este feito: “a primeira obra do gênero a ser produzida por uma jovem da nossa raça”, segundo a imprensa voltada ao público negro do Kansas. Ignora-se a extensão da pesquisa efetuada pelos autores da publicação para declararem tal feito. O Women Film Pioneers Project também aposta em Souders para esta façanha, por ter sido formalmente creditada como diretora, produtora e roteirista. No entanto, as cópias do filme são inexistentes.
Em 1923, Maria P. Williams dirigiu The Flames of Wrath (também destruído), descrito apenas como “um drama de mistério”. Curiosamente, a artista consta na ficha técnica apenas como roteirista e produtora, por motivos não justificados. Em 1929 e 1930, os filmes religiosos Hell Bound Train (1929) e Verdict Not Guilty (1930) foram oficialmente dirigidos por James Gist, porém pesquisadores acreditam que a esposa Eloyce King Patrick Gist tenha co-dirigido o projeto com o marido.
Algo semelhante ocorre com Alice B. Williams, esposa de Oscar Micheaux, e supostamente a verdadeira diretora (ou, pelo menos, co-diretora) não creditada dos filmes atribuídos a ele. Entre 1928 e 1929, Zora Neale Hurston foi devidamente reconhecida como diretora dos documentários antropológicos Children Games, Logging e Baptism. Em 1915, Drusilla Dunjee Houston já tinha um roteiro para servir de contraponto ao racista O Nascimento de uma Nação (1915), de David W. Griffith, porém ela nunca conseguiu realizar Spirit of the South: The Maddened Mob.
A dificuldade em determinar a primeira obra de autoria de mulheres negras no cinema diz muito sobre suas batalhas. Este contexto confirma o apagamento de mulheres e de indivíduos negros, cujos talentos são historicamente impedidos, negligenciados ou falsamente atribuídos a homens. Para além de seu valor estritamente artístico e cultural, o cinema também serve como sintoma de sua época, razão pela qual é fundamental preservar a história audiovisual – algo prejudicado por casos como incêndios em Cinematecas e acervos fechados.
Vale lembrar que, no Brasil, o primeiro filme dirigido por uma mulher negra e lançado comercialmente veio apenas em 1984: Amor Maldito, de Adélia Sampaio. A cinematografia brasileira precisou esperar por décadas até que um segundo título fosse produzido e apresentado ao público.
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