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Na próxima segunda-feira, 17 de agosto, chega ao Canal Space um projeto ambicioso: Um Dia Qualquer (2020), série em cinco episódios dirigida por Pedro von Krüger. A trama visa demonstrar a relação entre as milícias e o tráfico no Rio de Janeiro, contadas ao longo de um único dia trágico na vida de vários personagens. Enquanto Quirino (Augusto Madeira), chefe da milícia, disputa o controle da região com o traficante Seu Chapa (Jefferson Brasil), estes dois amigos de juventude brigam pelo amor da mesma mulher, Penha (Mariana Nunes), que parte em busca do filho desaparecido na manhã pós-Carnaval.

Nesta quarta-feira, 12 de agosto, uma coletiva de imprensa virtual reuniu o elenco principal da série, além do diretor, do produtor executivo Denis Feijão e da diretora de conteúdo da Turner, Sílvia Elias. Eles comentaram o processo de criação da série e o lançamento em plena pandemia de coronavírus:

 

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Mariana Nunes e Jefferson Brasil em Um Dia Qualquer. Foto: Rogério von Krüger

 

Filme ou série?

Uma das principais dúvidas da imprensa dizia respeito ao formato de Um Dia Qualquer. Os criadores se referiam à história enquanto filme, até explicarem que o projeto deveria ser lançado nos dois formatos: como longa-metragem e como série, nesta ordem. Mas o turbulento ano de 2020 modificou os planos:

“O filme, assim como a série, está pronto. Ele tinha lançamento agendado em fevereiro, mas tivemos essa questão de o presidente atual travar o Fundo Setorial. Assim, não deu para lançar em fevereiro, e então veio a pandemia”, explica Pedro von Krüger. “Estamos felizes de ter dois produtos separados. Quando pensei nessa história, queria jogar luz sobre um tema complexo. Com este produto audiovisual, queremos gerar uma discussão na sociedade [sobre a relação entre milícias, política e tráfico de drogas]. Afinal, o Rio de Janeiro está exportando esse formato, vide o assassinato de Marielle Franco por questões políticas. Não podemos olhar para isso como uma questão comum. Por isso trazemos o personagem do ativista (Gabriel Leal) dentro da história, que tem um objetivo claro dentro da coletividade, e sofre um atentado desde o início. Ele remete a George Floyd, para citar uma questão da nossa contemporaneidade”, completa.

“O produto filme-série deveria ser lançado quase ao mesmo tempo, em datas parecidas”, reforça o produtor Denis Feijão. “Sempre quisemos lançar o filme primeiro, e na sequência, a série chegaria a todas as janelas de exibição possíveis. Temos trabalhado os festivais nacionais e internacionais, e deveríamos receber um fundo para comercialização. Trata-se de um fluxo contínuo para projetos que receberam fundos para a produção, mas o desmonte da Ancine paralisou os recursos. Não é apenas o nosso filme nessa situação: muitas produtoras enfrentam a mesma dificuldade. O filme esteve na seleção oficial de Buenos Aires, e acabamos de ser selecionados em Madri, o que mostra a força do filme e do tema. Para o ano que vem, ele vai participar de um festival em Nova York, presencialmente. Vamos na luta para que o cinema seja colocado de novo em pauta”.

 

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Augusto Madeira em Um Dia Qualquer. Foto: Divulgação

 

O audiovisual em luta

A questão específica do Fundo Setorial do Audiovisual conduziu a uma discussão importante e ampla: os ataques do governo Bolsonaro à Cultura no Brasil. Os criadores foram unânimes em condenar a atual gestão, contrária a uma política de desenvolvimento público construída a duras penas, ao longo de mais de uma década. “A gente estava caminhando para uma indústria audiovisual no Brasil. Os fomentos estavam muito bem estabelecidos”, lamenta Pedro von Krüger. “A gente se acostumou a trabalhar pensando nesses fomentos, que não podem ser interrompidos de uma hora para a outra. O próprio audiovisual faz com que a roda gire. A gente vinha numa crescente muito especial que não deveria ser travada”.

Denis Feijão vai além, ao citar um “plano maquiavélico de desmonte da cultura”. No entanto, acredita que projetos como Um Dia Qualquer servem para confirmar o empenho de vários profissionais na produção de obras de qualidade. “A série vem num momento oportuno para mostrar que fazemos coisas boas, de que as pessoas gostam. A Turner foi fundamental para batalhar com a gente, para que esta estratégia de produção chegasse nesse momento”.

Os autores acreditam que a série constitua a oportunidade ideal para desfazer alguns preconceitos sociais a respeito da criminalidade. “Temos um olhar mais humano para essas causas”, defende o diretor, que trabalhou nas equipes de câmera de Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro (2010). “Temos um olhar humano, porque a história se passa dentro das casas, no dia a dia das pessoas”, explica, quando questionado sobre o imaginário do banditismo desenvolvido por Tropa de Elite e Cidade de Deus (2002). “É uma tragédia, mas também uma história original não distante da realidade, apesar de ser ficção. A gente mergulha muito nessa realidade pela relação que as famílias têm com essa violência. Não falamos do sistema como principal elemento, mas no modo como a relação entre as pessoas é influenciada por esse sistema. São relações de marido e mulher, mãe e filho”.

“O canal optou por investir na série por não ter juízo de valores, por não dizer quem é bom e quem é mau”, precisa Sílvia Elias. “As pessoas são colocadas numa situação por falta de opção. Por isso gosto do histórico da Penha”. De fato, a série efetua idas e vindas no tempo, entre a juventude de Penha, quando se relacionava com Quirino, e o presente, dez anos mais tarde, quando se torna esposa de Chapa.

 

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Mariana Nunes em Um Dia Qualquer. Foto: Divulgação

 

Fugindo aos clichês sobre a favela

A comparação com os inúmeros projetos sobre a criminalidade no cinema e na televisão levaram a questionamentos sobre o diferencial deste projeto. O que Um Dia Qualquer traria de novidade? O elenco garante que o valor desta abordagem se encontra no humanismo e na fuga aos estereótipos clássicos dos bandidos. Jefferson Brasil, morador do Morro do Vidigal e habituado a papéis de traficantes, pondera:

“Muitas pessoas acham que, por a gente morar em comunidade, esses personagens se tornam mais fáceis de fazer de expressar. Venho de uma instituição no Vidigal chamada Nós do Morro, que dá oportunidade há mais de 30 anos a jovens para fazerem arte. Não sou cria do Vidigal, venho da Zona Norte do Rio. No entanto, Marechal Hermes e Engenho de Dentro sempre estiveram no meu convívio desde pequeno. Frequentei os locais onde essas histórias realmente acontecem. Quando você faz um personagem como o Seu Chapa, seria fácil fazer cara de mau. Mas eu sou pai de família, tenho dois filhos, e preciso me preparar muito para interpretá-lo. O Chapa também é super humano, e tentei trazer isso para ele, para a gente não cair no lado do estereótipo. Fazer um personagem de bandido requer muito estudo. Busquei trazer a suavidade. Antes de ser bandido, ele é pai de família, tem sentimentos. Ele só não teve oportunidades”.

O ator acredita que personagens como o traficante sejam fruto direto desigualdade social. “Se ele tivesse oportunidades no Brasil em que a gente vive, talvez estivesse em outra profissão, distante do crime. Nesse Brasil que a gente vive, totalmente racista, o seu Chapa é vítima de uma elite branca que vem há tempos anulando a nossa história, apagando tudo o que a gente conquistou com muita luta e muita glória. Chega o momento em que você se vê em desespero. O envolvimento do Chapa com o crime acontece quando ele vê o desespero na frente dele, precisando sustentar uma família, mas sem oportunidades. No momento em que estamos vivendo, cada vez mais vemos isso: o povo preto sendo inferiorizado, massacrado. Através do Chapa, posso falar não só da minha comunidade, mas de todas as comunidades do Brasil. Falta educação e falta conhecimento, que não são transmitidos na televisão. A pessoa não tem livro, não tem estudo, mas tem televisão e pode ver um personagem como o Chapa”.

 

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Juan Paiva e Willean Reis em Um Dia Qualquer. Foto: Divulgação

 

Um elenco negro que conhece o Rio de Janeiro

Ainda que concorde com o colega, Mariana Nunes está buscando “fazer pazes com o termo estereótipo”, em suas palavras. “Acho importante ressaltar que qualquer ator, de qualquer lugar do mundo, vai trazer sua experiência de vida consigo. É claro que cada um tem sua técnica, mas não tenho como atuar sem trazer o que vivi. O Jefferson tem muito conhecimento o bairro, mas Marechal Hermes é diferente do Vidigal, que é diferente da Rocinha. Independente de onde você venha, é preciso fazer um trabalho de equalização de vivências. A experiência prévia é importante, mas não é suficiente. A gente sabe do que a gente está falando, mas essa história poderia se passar em outro lugar. A Penha é uma Antígona, querendo um corpo para enterrar, assim como várias outras mães no Brasil de hoje. Estou querendo fazer as pazes com o termo estereótipo. Você encontra estereótipos em Ariano Suassuna, nas tragédias gregas, na commedia dell’arte. O nosso imaginário é formado por esses personagens”.

“Buscamos pessoas reais”, sublinha Denis Feijão. “Esse elenco é preto, na grande maioria. Isso vai de encontro à nossa busca de trazer pessoas reais, diversas e íntegras, com uma interação fantástica. Tivemos mais de 350 figurantes, a grande maioria são pessoas ali da Zona Norte, de Marechal Hermes e Bento Ribeiro. Isso também trazia uma verdade ao elenco de apoio. É vibrante ter isso na tela”.

“A gente tem esse elenco mais experiente. A Mari, o Jefferson e o Augusto, apesar de aparecerem dentro de seus clichês, são muito versáteis. Qualquer nuance que eu precisasse alterar para não cair no lugar comum, eu podia pedir, porque eles têm um diapasão muito extenso. O núcleo jovem ainda não tem uma carreira extensa, mas tem um talento profundo. Todos que participaram do teste eram jovens de talento, que vão se tornar ainda mais conhecidos em breve. Durante as entrevistas com atores, eu queria saber quem eram essas pessoas. O Willean Reis, que interpreta o Beto, por acaso, tinha um vizinho miliciano. A Eli Ferreira vem de Belford Roxo. Não busquei pessoas que fossem idênticas aos personagens, mas fizemos um trabalho de entrevista para conhecê-los”, explica o diretor.

 

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Pedro von Krüger à direita) e Augusto Madeira (à esquerda) durante as filmagens. Foto: Divulgação

 

“O mercado tende a te rotular”

Aos atores, coube um questionamento sobre a importância da série em suas carreiras. Depois de fazer muitas comédias, Augusto Madeira se voltou às séries policiais, já Mariana Nunes tem interpretado diversas personagens trágicas. Como Um Dia Qualquer se insere nesta trajetória?

“Não me considero comediante, eu me considero um ator que faz comédia”, pondera Madeira. “Mas o mercado tende a te rotular. Pedi para sair do Zorra, e comecei a evitar trabalhos nessa linha porque estava interessado em fazer outras coisas. Agora tenho feito personagens mais violentos, de caráter discutível, como pedófilos, assassinos e milicianos. Estou inclusive nesse projeto porque o Pedro viu a série Crime Time, e achou que essa era o caminho do Quirino. A gente luta para não ficar rotulado, porque queremos coisas que nos desafiem”.

Nunes concorda com a busca pela variedade, embora acredite que Penha não repita as experiências anteriores na televisão. “Quero fazer outras coisas também, além dos papéis com forte carga dramática. As personagens que interpretei recentemente [em Carcereiros, 2017 – 2018, e Amor de Mãe, 2020] têm em comum é o fato de serem mães, ou quererem ser mães. Em Um Dia Qualquer, Penha é uma mãe, na primeira segunda-feira após o Carnaval, saindo em busca do seu filho. Ela sente que aconteceu alguma coisa com ele. Ela tem este conflito neste dia, mas a personagem é construída dez anos antes. Ela tem emoções muito fortes e um arco trágico. Nestes outros casos, não tive tantas camadas para trabalhar”.

Madeira defende a opção por interpretar criminosos, sem quaisquer julgamentos morais. “Sempre procuro defender os personagens que interpreto. Não foi difícil interpretar Quirino sem torná-lo vilão. O que o move, ainda que de forma torta, é um senso de justiça, não importa por quais meios. Ele tem certo ciúme em relação ao Chapa e à Penha. Tentei fazer dele um cara muito cansado dez anos depois. No passado ele era vigoroso. Mas depois de dez anos impondo este regime à base de muita violência, isso gera um peso nas costas muito grande. Por mais que o projeto de poder a longo prazo esteja em construção, a tendência é que ele amenize isso. A vida do Quirino é cansativa. Não imagino que ele venha a ter uma vida longa”. Seria um aceno à possível segunda temporada?

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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