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Sinopse

Diferentes pontos de vista dão conta de questões como trabalho, sexo, família, relacionamentos, solidão, medos, anseios e desejos. Isso tudo num estágio de isolamento. Diferenças de classes e privilégios também aparecem.  

Crítica

Certa vez, durante uma rodada de entrevistas, os humoristas do programa norte-americano Saturday Night Live revelaram o maior aprendizado que a série lhes trouxe. Um ator evoca o período em que treinou incessantemente para encarnar Michael Jackson. Ele adquiriu os trejeitos, a voz, o movimento corporal. Vestiu a peruca, os ternos, as meias brancas características. Quando apresentou o resultado ao diretor Lorne Michaels, descobriu que a proposta tinha sido rejeitada, para a surpresa de todos. “Está real demais”, apontou. Para Michaels, o interesse do humor se encontra na capacidade de dialogar com a vida para superá-la, não para imitá-la com fidelidade – esta comunicação direta caberia ao drama. Em outras palavras, a comédia se distancia da “fuga do real” e da “distração dos problemas cotidianos”, conforme sugere o senso comum. Ela teria no cotidiano um ponto de partida, ao invés de ponto de chegada: assim como o terror, a fantasia, a ficção científica e o cinema “de gênero” em geral, o humor funcionaria para confrontar o público aos limites de nossa própria existência.

Esta anedota permite refletir sobre 5x Comédia (2021). A diretora Monique Gardenberg adaptou as esquetes da peça de teatro homônima aos tempos de Covid-19. Entram em cena personagens hipocondríacos, outros que desejam furar o isolamento social; casais em crise; empresários explorando os trabalhadores; influenciadores digitais buscando novos seguidores a qualquer custo. Além de dialogar com a realidade, o projeto tem o desafio de retratar uma crise em andamento. A criadora estima que o período de caos político e sanitário, com mais de 300 mil mortos no Brasil, fornece um prato cheio para a comédia, e ela tem razão: o humor constitui uma excelente válvula de escape para as angústias represadas nas casas e nos hospitais. De fato, é possível fazer piadas a partir de um momento tenso, contanto que se adquira o ponto de vista dos personagens, e que se ria do absurdo das situações, sem ridicularizar os personagens sofredores. Neste sentido, a série obtém sucesso: os artistas tomam evidente precaução para respeitar a dor de tantas famílias em luto. O roteiro aborda a vida de pessoas reclusas, porém saudáveis, ou com doenças leves. Evita-se mencionar a morte e a dor da separação – pelo contrário, os personagens sofrem mais pela convivência forçada do que pelo afastamento.

No entanto, as cinco esquetes da primeira temporada resultam “reais demais”, como diria Lorne Michaels. O humor aumenta a pandemia com uma lupa, porém sem subvertê-la: excetuando o fato de as casas e apartamentos serem particularmente grandes (privilegia-se a classe média), e de os trabalhos soarem inverossímeis (professores, arquitetos, músicos e costureiras desempenham pouco suas profissões, com exceção do porteiro), a galeria de personagens oferece fácil identificação ao público, não por subverter o que adoramos e detestamos em nossos familiares, namorados e esposos, e sim por reproduzir os relacionamentos médios. Ora, para refletir sobre a pandemia, Grace Passô imaginou uma mulher isolada em sua casa, descobrindo que o Brasil é um sonho, em República (2020). Radu Jude concebeu um filme inteiro onde os atores têm os rostos cobertos por máscaras em Bad Luck Banging or Loony Porn (2021), e Denis Côté propôs um romance clássico onde os amantes permanecem a muitos metros de distância um do outro, gritando juras de amor eterno, em Hygiène Sociale (2021). Trata-se de metáforas utilizadas para ultrapassar o contexto do isolamento social: a forma se torna conteúdo.

Ora, 5x Comédia possui ambições mais limitadas em termos estéticos. Por mais louvável que seja a filmagem remota, com atores interagindo à distância, o resultado se mostra pouco apurado: alguns episódios sofrem com fortes desequilíbrios de som (Hipocondríaco e Cinderela), com a luz estourada (Hipocondríaco, novamente), com dificuldades de montagem ou recursos limitados de pós-produção (em Sem Saída, Cinderela e Colapso). Os atores são ótimos: qualquer diretor sonharia em contar com talentos do nível de Gabriel Godoy, Samantha Schmütz, Rafael Portugal, Gregório Duvivier e Martha Nowill. No entanto, o roteiro cria personagens rasos, resumidos a um único traço de personalidade, disparando falas do tipo “Você está mais desempregado que o Chaplin no início do cinema falado”. Essa tirada deve ter parecido divertida no papel, mas nenhum personagem naturalista se comunica assim. Indeciso entre o conto e a crônica, entre a farsa e comédia agridoce, o projeto falha em desenvolver os pequenos conflitos de seus personagens, preferindo resolvê-los magicamente no final de cada episódio. O homem hipocondríaco se emancipa, os casais reatam, o youtuber conquista um sucesso simultâneo, o porteiro compreende o seu valor.

Deste modo, o roteiro comprova a capacidade detectar os traços recorrentes do mundo pós-2020. No entanto, o discurso não tem propostas a partir deste cenário: o que fazer com tantas angústias e problemas domésticos? A resposta seria nada, a julgar pelas esquetes otimistas e ingênuas: tudo se resolverá com o tempo. O ideal de leveza aplicado pelo deus ex machina e pelo valor dos afetos se traduz numa representação apolítica, e por isso mesmo conformista. Entretanto, cabe pensar: de que maneira seria possível mencionar a política e a organização social de maneira corrosiva, irônica, provocadora? Como mencionar um certo genocida sem mencioná-lo; falar de vacina sem falar dela? Gardenberg mergulha num período complexo, mistura de convulsão e apatia social, com o receio de incomodar quem quer que seja. O espectador progressista encontrará a mulher libertária e grávida fazendo espetáculos eróticos online (Martha Nowill, atriz que abraça com garra qualquer desafio à sua frente), já o conservador poderá rir com uma enésima representação do porteiro ignorante, buscando a nossa risada pela ingenuidade e pelos erros de inglês, ou ainda o influenciador que se torna ainda mais efeminado quando ligam as câmeras.

Em quatro dos cinco episódios, há casais heterossexuais em relacionamentos estabelecidos (incluindo casamentos, beijos, sexo), já o único episódio com um rapaz gay apenas sugere a possibilidade de encontro com outro homem. Estamos distantes de um posicionamento firme diante da contemporaneidade, e não são as frases didáticas que consertam a situação. Cinderela e Colapso, os episódios mais explicitamente focados em dilemas sociais, se concluem com discursos didáticos ao limite do infantil. Caso os personagens não representem arquétipos claros o bastante, o diálogo explica passo a passo a existência da desigualdade e do preconceito. Resta uma relação ambígua com o espectador: por um lado, o discurso nos trata como adultos, com contas para pagar e problemas de relacionamento dentro de casa. Por outro lado, a série nos coloca na posição de alunos pouco inteligentes, a quem se precisa pedir que pense nos outros, que tome cuidado, que evite aglomerações, que fique em casa. Estas mensagens são fundamentais diante do negacionismo e da desinformação atuais, mas talvez não caiba à arte nos dizer o que pensar, e sim provocar reflexões para chegarmos a estas ideias por conta própria. Herdeiro das formas populares de televisão, 5x Comédia imagina um espectador passivo e cômodo demais. É difícil conceber um retrato bem-sucedido da pandemia sem subverter a forma, nem enxergar neste processo uma crise política muito maior do que a dificuldade de ficar em casa.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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