Crítica


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Sinopse

Dois cientistas criam um medicamento experimental e potencialmente inovador. Diante dos dilemas proporcionados pela invenção, eles precisam lidar com suas diferenças.

Crítica

Qual é o maior medo do homem? É possível imaginar algo mais temido do que a própria morte? E se fosse possível eliminar os sentimentos relacionados a esse desfecho comum a todos, mas ainda assim, completamente desconhecido? Qual seria o preço a ser pago, e a disposição para alcançar tal estado? Essas são as principais questões que motivam a trama de A Bênção, uma curiosa e intrigante série nacional desenvolvida no sul do país, disposta a se comunicar não apenas com todo o Brasil, mas também com o mercado internacional. Por mais que a cidade de Porto Alegre seja facilmente reconhecível aos olhos dos moradores locais, a ação não é pontuada, desprovida de sotaque ou contornos regionais. Muito pelo contrário, ambiciona voos mais distantes. E pelo que se pode observar nos oito episódios dessa temporada de estreia, não causará espanto caso alcance essa tão almejada comunicação mais ampla.

Para começar, o protagonista é o ator baiano Aldri Anunciação (Ilha, 2018). A origem do intérprete é também do personagem, o médico e bioquímico Arthur. Determinado, se candidata a uma vaga no laboratório do conceituado doutor Lerner (Werner Schünemann, contido na maior parte do tempo, o que soa positivo dentro do conjunto). O rapaz não irá descansar até conseguir o trabalho, e meio que por acaso, acaba conquistando também a filha do novo patrão, a psicóloga Marta (Priscilla Colombi). Essas relações, no entanto, não são expostas de imediato. Não há pressa na narrativa, outra feliz descoberta. Tudo tem seu tempo, e à medida em que o espectador vai se aprofundando nas revelações, tanto as mais surpreendentes quanto essas, à princípio corriqueiras, vão se somando até envolverem a audiência em uma estrutura típica do formato assumido. Veja bem, essa não é uma novela, e também está longe de se apresentar como um filme estendido. E com isso, um mundo novo se apresenta tanto aos realizadores, como também diante a sua audiência.

Quando A Bênção começa, Arthur e Lerner estão com um problema em mãos. O medicamento que estão desenvolvendo, uma pílula capaz de suprimir a dor e o sofrimento de pacientes terminais, teve sua pesquisa cancelada pelos investidores alemães. O incômodo se mostra maior quando Marta, contrariando a vontade do marido e incentivada pelo pai, decide usar a droga experimental em alguns dos seus pacientes. A ideia seria confortar aqueles mais traumatizados, como o policial Júlio (João Campos, de Depois de Ser Cinza, 2020), que milagrosamente escapou com vida após ter sido alvejado na cabeça durante uma tomada de um ponto de drogas, e a jovem Nina (Maria Galant), uma garota que enfrenta um estado avançado de câncer. Porém, quando se descobre que o comprimido gera uma forte dependência e não permite uma abstinência maior a 24 horas, o conflito se estabelece, e as coisas aos poucos começam a fugir do controle daqueles que deveriam ser a voz da razão no meio do caos que se estabelece.

Arthur e Lerner estão em lados opostos da questão. O primeiro quer dar fim ao experimento, dedicando seus esforços ao controle de danos junto aos que já estão sob efeito da medicação. O segundo, no entanto, deixa claro não estar preocupado com o agora, e sim com suas pretensões em relação ao amanhã. Ele quer não apenas seguir com os trabalhos, como também acredita ter descoberto uma droga capaz de mudar o status quo da sociedade tal qual a conhecemos. Como se vê, as apostas são altas. E ao envolver outros elementos de forte potencial de discussão, como o fanatismo religioso e o descontrole policial, a série mostra que está disposta a ser certeira em seu discurso, por mais que esse possa se perder em um momento ou outro. Basta observar o conflito de um personagem homossexual, cuja saída do armário e o impacto que isso provoca naqueles ao seu redor poderia ter um peso dramático melhor trabalhado, mas acaba se perdendo no meio de tantos outros eventos.

Há alguns cacoetes visuais que podem incomodar o espectador mais atento, como o excesso de planos aéreos de drones pela cidade durante as passagens de tempo, assim como a falta de maiores ambientações nas mudanças de espaços – a grande maioria das cenas se dá em lugares fechados, provavelmente gravados em estúdio, sem que ocorra uma devida localização geográfica dessas movimentações. O elenco, que carrega grande parte da responsabilidade pelo sucesso da empreitada, também é irregular. Campos é um dos que se sai melhor com um tipo que vai do descontrole à necessidade de contenção, enquanto que Áurea Baptista (Aos Olhos de Ernesto, 2019), como uma chaveira que precisa lidar com a mãe doente, ao mesmo tempo em que os efeitos da droga no seu organismo passam a liberar antigas vontades até então inconfessáveis, se mostra como a mais agradável surpresa. Joguete nas mãos de alguns, ela também tem anseios a serem atendidos, gerando uma dualidade interessante de ser acompanhada. Por outro lado, Anunciação e Colombi se beneficiariam de um maior entrosamento entre eles, assim como Galant merecia diálogos mais bem trabalhados, que não soassem tão forçados ou artificiais.

Visualmente atraente, A Bênção também ganha pontos pela narrativa fluida e envolvente, que é hábil em prender a atenção de um episódio a outro. Com ganchos suficientes para que uma próxima temporada mantenha a expectativa em alta, é de se esperar apenas que alguns desenlaces do roteiro sejam melhor trabalhados. Afinal, aceitar um vício involuntário não deveria ser tratado de forma leviana (como acontece com o coroinha interpretado por Rodolfo Ruscheinsky), da mesma forma como a artimanha acusatória do antagonista que atira no próprio ombro para incriminar seu desafeto não se sustenta diante qualquer olhar minimamente perspicaz – bastaria uma verificação das impressões digitais para que a verdade viesse à tona. Esses, no entanto, são apenas poréns, ajustes que podem vir a agregar numa eventual, e esperada, retomada desse universo num segundo ano. Afinal, o que se vê denota compromisso e expertise suficientes não apenas para justificar os investimentos envolvidos, mas também para validar uma demanda crescente, diversa e mais do que necessária.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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