Crítica


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Sinopse

Determinada a salvar seu casamento com Germán, a professora Raquel aceita uma vaga de substituta na cidade natal do marido. Seu entusiasmo com o início das aulas no povoado galego não parece compartilhado pelos alunos. No primeiro dia de aula, uma mensagem ameaçadora é colocada em sua bolsa. Logo, ela se vê num turbilhão de mistérios envolvendo a professora anterior, Veruca, que teria cometido um suicídio.

Crítica

A Desordem que Ficou (2020) constitui uma narrativa dobrada em metades, ou talvez seja meia narrativa desdobrada em duas, dependendo de qual ponta se observe o projeto. A história de Raquel (Inma Cuesta), professora de literatura contratada no vilarejo espanhol de Romariz, reproduz a história de Veruca (Bárbara Lennie), professora de literatura enviada à mesma cidade antes dela, para lecionar na mesma turma. Elas não constituem figuras opostas, tampouco mulheres de personalidades radicalmente diferentes. As educadoras evitam a dicotomia passado/presente, visto que convivem na contemporaneidade, uma se sucedendo à outra. A oportunidade profissional de Raquel decorre da morte de Veruca, e quanto mais a primeira se inteira das circunstâncias do suposto suicídio, mais percebe estar traçando um caminho idêntico. Esta heroína duplicada proporciona uma leitura trágica sobre o destino do qual seria vítima e algoz. Conforme investiga a morte da outra, corre o risco de ser assassinada. Quanto mais busca se distinguir dos rumos traçados por terceiros, mas se vê presa à trama alheia.

No fundo, há uma relação de solidariedade, mas também de dominação entre mulheres intimamente ligadas pelo destino e pela montagem, ainda que não contracenem. A costura entre protagonistas de temporalidades distintas constitui o principal mérito da série espanhola. (Aliás, o único encontro propriamente dito ocorre numa cena belíssima pela simplicidade e pelos traços tipicamente almodovarianos). O relacionamento entre Raquel e Veruca, mulheres fortes e complexas, uma destinada a substituir a outra, constitui o pilar do projeto. Elas conversam via edição, em estrutura espelhada: quando uma se envolve com o amante, a outra desenvolve um relacionamento extraconjugal; quando uma delas sofre com a perda da mãe, a colega enfrenta dilemas semelhantes; quando uma corre risco de morte, a segunda se confronta aos inimigos. O roteiro não soa redundante, por buscar constante afastamento entre as partes, apenas para reaproximá-las, como em ruas paralelas conduzindo a um único final. O interesse do espectador nasce da promessa de separação: como Raquel conseguirá enfim se descolar da antecessora, fugindo à morte anunciada?

Inma Cuesta e Bárbara Lennie são excelentes atrizes, de estilos bastante diferentes. A primeira trabalha as emoções explícitas, reforçando a impressão de cansaço e de desorientação no rosto, enquanto a segunda possui uma expressividade glacial, trazendo impressionantes nuances a partir de um corpo rígido e um olhar duro. Cuesta se insere muito bem dentro do estilo de Pedro Almodóvar (ela atuou em Julieta, 2016), ao passo que Lennie não faria feio numa obra de Michael Haneke. “Veruca também tinha esse olhar, esse vigor quando chegou aqui”, atesta Concha (Ana Santos), personagem-oráculo que observa tudo e se aproxima de todos os lados da história, embora soe invisível no fundo do cenário. É interessante que esta trajetória seja encarnada por estilos diversos, trazendo nuances às noções de sexualidade e autonomia femininas. O texto nunca julga as heroínas pelos homens com quem se envolvem (casados ou não, maiores ou menores de idade), nem pelas atitudes profissionais contestáveis ao longo do caminho. O universo de crescente chantagem, manipulação e ameaça (Raquel sente-se perseguida, sem saber ao certo por quem) faz com que ambas tomem atitudes impensadas. No entanto, ao invés de sucumbirem à posição de vítimas, tomam a dianteira dos conflitos. Raquel poderia interromper sua investigação pessoal, mas não o faz. Envolvida num relacionamento tóxico com Iago (Arón Piper), Veruca não sucumbe: quando ele ameaça saltar da ponte, ela prefere subir ao lado dele, diluindo a relação de poder – se ele pode se jogar, ela também pode. Estas mulheres ditam os rumos da trama, indo de encontro ao perigo ao invés de serem perseguidas por ele.

Em termos de produção, A Desordem que Ficou apresenta o que se convencionou chamar de padrão Netflix de qualidade: as imagens são polidas, cada cenário é bem iluminado e filmado, com direção de arte cuidadosa no desenho de casas, escolas e vilarejos plausíveis. Em outras palavras, há recursos suficientes para oferecer um produto de alto nível, não ostensivo, porém destituído de ambições autorais. A direção da série se assemelha àquela de dezenas de projetos que a antecederam, todos pautados pelo deslizar elegante da câmera sobre os cômodos, pela nitidez impecável da imagem e a montagem equilibrada entre o tom contemplativo e a agilidade contemporânea. Nota-se tanto a competência quanto a impessoalidade: assim como Hollywood desenvolveu uma linguagem padrão para grandes produções e a televisão aberta criou sua linguagem específica, os gigantes do streaming atingem outra forma de pasteurização profissional e endinheirada. Quantos anos serão necessários até que esta imagem do bom gosto se converta em algo tão cafona quanto os close-ups das telenovelas?

Apesar do intrigante retrato psicológico das protagonistas, o roteiro sofre com elementos facilitadores, distribuídos entre o improvável e o absurdo. Explora-se à exaustão a lógica de que “este é um pequeno vilarejo, todos se conhecem” quando convém proporcionar reencontros entre personagens em contextos distintos. Tem-se a impressão de que existem apenas doze personagens em Novariz, já que nenhum aluno de filosofia além de Iago, Roi (Roque Ruíz) e Nerea (Isabel Garrido) adquirem qualquer desenvolvimento, e os adultos não relacionados com Raquel ou Viruca são inexistentes. Os telefones celulares estão sempre ligados, com o som alto, prontos para tocar dentro da sala de aula, incluindo os aparelhos dos professores. Cada caminhada numa viela escura traz um carro assustador perseguindo as protagonistas pela rua vazia, numa dezena de cenas idênticas. Raquel e o marido Germán (Tamar Novas) são investigadores fracos, confrontando seus suspeitos em público, sem mudar de estratégia diante das iniciativas fracassadas. É conveniente demais que os personagens não tenham buscado até então um celular contendo informações sigilosas, ou ainda um saco generoso de dinheiro – nenhum dos dois particularmente bem escondidos. Uma figura salvadora, com uma arma carregada, aparece na hora precisa, enquanto um esquema criminoso de imensas proporções se desenvolve na cidadezinha sem provocar desconfiança.

Muitos recursos beiram o kitsch sem se assumirem enquanto tais. A cena do gigantesco retrato na parede, iluminado pelas frestas na janela e pelo reflexo da chuva, ao som de música romântica, remete ao cinema erótico dos anos 1980. As redações de Roi, transformadas em confissões diretamente para a câmera, apostam numa linguagem pop-adolescente incoerente dentro do projeto sisudo, desprovido de humor. Em especial, a Netflix precisa abandonar a premissa desgastada do “jovem cafajeste irresistível”, herdeira do fetichismo de Cinquenta Tons de Cinza (2015), e reproduzida tanto em 365 Dias (2020) quanto em Desejo Sombrio (2020). Na parte central da narrativa, sugere-se que o erotismo de Iago seria avassalador para as Madames Bovary entediadas em seus matrimônios modernos. Felizmente, encontram-se rumos alternativos tanto para as protagonistas adultas quanto para os adolescentes, ainda que o roteiro precise eliminar o cenário da sala de aula nos três episódios finais. O projeto não evita os vícios do romance “apimentado”, filtrado pela perspectiva do mommy porn – vide o envio das nudes sem nudez, a gravação de sexo comprometedor sem penetração, e as inúmeras irrupções de homens sedutores no banheiro feminino.

Por fim, existem tantas razões para admirar o projeto espanhol quanto para lamentar as concessões discursivas e estéticas. A Desordem que Ficou funciona muito melhor enquanto suspense psicológico do que thriller policial. Embora se aprofunde consideravelmente no primeiro gênero, desenvolve-se de maneira atrapalhada no segundo, culminando numa resolução mágica dos crimes (os poderosos não recorrem aos contatos capazes de inocentá-los, acatando pacificamente a decisão das autoridades). Na reta final, o texto ameaça deslocar o protagonismo das mulheres aos homens, através da redenção de Germán e Iago. Felizmente, consegue recentrar as atenções em Raquel e Veruca, recuperando personagens esquecidos pelo caminho (Roi e Nerea) e atando as pontas soltas do luto materno e paterno. Este seria o bom exemplo de uma série para adultos, no sentido de não introduzir uma leveza artificial nem sacrificar a complexidade dos personagens. Mesmo assim, o ótimo elenco, a dinâmica dos duplos e a abertura à sexualidade feminina descomplexada permitiriam aos criadores irem além da mera descoberta e punição dos vilões. Raquel e Veruca são personagens maiores do que os quiproquós policiais no qual estão envolvidas.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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