Crítica


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Sinopse

Um terrível assassinato abala o escritório do promotor público de Chicago, EUA. Um dos funcionários do local é suspeito do crime. Agora, o acusado lutará para manter família e casamento intactos.

Crítica

Baseada no romance homônimo lançado por Scott Turow em 1987, a minissérie Acima de Qualquer Suspeita fala de uma investigação criminal, mas a sua essência dramática está nas medidas drásticas tomadas para uma família continuar unida, custe o que custar. O protagonista é Rusty Sabich (Jake Gyllenhaal), charmoso e bem-sucedido promotor de Chicago, nos Estados Unidos, considerado o principal suspeito da morte de sua colega e amante Carolyn Polhemus (Renate Reinsve). Porém, antes de começarmos questionar eventuais culpa ou inocência, os criadores desse programa com o selo da AppleTV+ apresentam um cenário de tensões políticas que influenciam o rumo das investigações. Rusty é fiel ao promotor-chefe prestes a perder a eleição distrital e, por conseguinte, desafeto do provável novo ocupante desse cargo jurídico tão importante, Nico Della Guardia (O-T Fagbenle), bem como de seu braço direito, Tommy Molto (Peter Sarsgaard). Essa trama não trata necessariamente da busca pela verdade, mas da construção de cenários e probabilidades capazes de convencer um júri suscetível a optar entre encarcerar ou livrar alguém que é inocente antes de ser provado o contrário. Como vimos em Anatomia de uma Queda (2023), excepcional filme francês, o rito judicial obedece a lógica do convencimento, das simpatias entre jurados e réus, especialmente quando as provas são frágeis.

Acima de Qualquer Suspeita é parte um drama familiar, parte um thriller jurídico. No que diz respeito à primeira de suas vocações, a minissérie é empenhada em mostrar um lar chacoalhado por turbulências que o ameaçam de destruição. Com a acusação pública de Rusty, sua esposa, Barbara (Ruth Negga), e os dois filhos adolescentes do casal são submetidos aos olhos da opinião pública. Então, a infidelidade matrimonial do homem cobra um preço da companheira e dos descendentes. E a ruptura da normalidade doméstica é o principal foco da primeira metade da minissérie, vide as várias cenas em que marido e esposa tentam se entender em meio ao tornado varrendo as suas privacidades, filhos sofrendo em virtude do burburinho gerado por um caso cada vez mais midiático, entre outras demonstrações da fragilidade da unidade caseira. Os realizadores recorrem a um lugar-comum relativamente comum no cinema norte-americano, exatamente aquele em que a morte de um(a) amante desencadeia o que pode ser a implosão de uma família tradicional supostamente feliz. São exemplos disso Infidelidade (2002) e A Negociação (2012) – curiosamente, ambos estrelados por Richard Gere. Nessas produções, o cadáver de um terceiro elemento é utilizado para pressionar de modo decisivo um personagem adúltero lutando para conseguir reverter a implosão de um casamento e, claro, da família feliz.

Carolyn Polhemus é o elemento a partir do qual as tensões vêm à tona. Dela sabemos apenas o que terceiros falam, sem qualquer objetividade. Uns se referem à falecida como sedutora, outros a entendem como vítima do homem obsessivo, mas os criadores da minissérie nem se atentam muito para a subjetividade dessa personagem-mosaico construída a partir de perspectivas alheias. Depois da instauração da calamidade dos Sabich, há o processo judicial propriamente dito, momento em que Acima de Qualquer Suspeita fica mais interessante. Nos quatro primeiros episódios dessa produção elegante há repetições desnecessárias de elementos anteriormente apresentados, situados e consolidados. Já nas suas quatro frações finais, há uma carga mais concentrada de dramaticidade e um aproveitamento mais bem resolvido de todos os lugares-comuns dos filmes de tribunal: construção de lógica, antagonismos, animosidades, distorções em prol de um lado, o processo afetando os profissionais a nível pessoal, peças supostamente externas que podem ainda ser decisivas, etc. Portanto, quando se concentra no embate retórico entre a promotoria (de atuação enviesada por animosidades anteriores) e a defesa (pouco certa da inocência do réu) o programa cresce bastante. Não por acaso, nesse ponto a rivalidade entre Rusty e Tommy se torna central à trama, algo possível pelos desempenhos notáveis dos atores.

Jake Gyllenhaal está ótimo como o homem charmoso de tendências agressivas, alguém que consegue dar sustentação à nossa dúvida: afinal de contas, poderia esse servidor da lei ter espancado até a morte a ex-amante por quem ainda era obcecado? No outro corner do ringue está Tommy, brilhantemente interpretado por Peter Sarsgaard, o acusador tentando provar a sua capacidade de encurralar e vencer o sujeito de quem evidentemente sentia inveja (profissional e pessoalmente falando). Uma curiosidade: Jake Gyllenhaal e Peter Sarsgaard são cunhados na vida real. Voltando ao rol de ótimas atuações, encontramos Ruth Negga como a esposa arrastada à catástrofe pública que revira a sua vida, isso enquanto é convocada a apoiar o marido adúltero que a fez sofrer. Acima de Qualquer Suspeita é baseada no mesmo livro que deu origem ao longa-metragem homônimo lançado nos Estados Unidos em 1990, no qual o protagonista foi vivido por Harrison Ford. Se compararmos as duas versões encontraremos diferenças fundamentais, das mais óbvias às menos escancaradas. Claro que ao ganhar tempo para desenvolver cenários e contextos, os criadores da minissérie conseguem explorar com mais detalhes a família em perigo e o jogo cênico dos julgamentos durante testemunhos, inquirições, diálogos com a juíza e as demais articulações de defesa/acusação. E também o encerramento é diferente do original.

Na medida em que a história avança, vários personagens são apontados como possíveis assassinos. É preciso manter a dúvida ativa, então nada melhor do que criar uma rede de prováveis homicidas e instigar o espectador com versões plausíveis. Porém, se os criadores da minissérie quisessem ressaltar a prevalência dos ritos jurídicos sobre a verdade, não seria melhor encerrar a história no breu da ignorância, com a incapacidade de chegar ao culpado? Não seria mais interessante como observação dos protocolos perversos que mantém certas famílias de pé amarrar essa turbulência toda com a corda do mais completo obscurantismo? Talvez para dar uma satisfação ao público ávido por respostas corretas, no último episódio há a revelação das circunstâncias que levaram ao assassinato da promotora perseguida pelo colega obcecado com dificuldades para ouvir negativas. Mesmo assim, esse encerramento é interessante, pois, ainda que se mantenha ancorado na ideia de “chegar à verdade”, distribui a responsabilidade dentro de um núcleo muitas vezes considerado a célula matriz da sociedade. Como diria León Tólstoi no começo de Anna Kariênina, um de seus romances mais aclamados: “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Assim, se ao menos não há um gesto radical de inviabilizar a solução de certo modo confortável, ao menos a mentira é coroada e entronizada.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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