Crítica
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Sinopse
Crítica
Uma das grandes surpresas, pois pouco discutidas, entre as produções originais Netflix, After Life teve uma primeira temporada calcada num protagonista ríspido, comportamento alimentado pela tristeza da viuvez. Não encontrando sentido na vida após a partida de sua esposa, Lisa (Kerry Godliman), Tony (Ricky Gervais) decidiu evitar esforços para ser minimamente agradável, com frequência vomitando inconveniências e grosserias envernizadas em amigos e colegas de trabalho. Mesmo assim, Gervais, que assumiu além do protagonismo a produção, a escrita do roteiro e a direção, conseguia fazer do sujeito uma figura absolutamente cativante, inclusive por conta da indisposição com certas convenções. Na medida em que a trama caminhava, o víamos estabelecendo novos vínculos, ora melhorando, ora regredindo. Mesmo sem querer, ele acumulou experiências capazes de lhe tirar de uma fossa supostamente interminável. Tanto que seu encontro com a enfermeira Emma (Ashley Jensen) apontou a um caminho auspicioso que poderia o tornar menos miserável.
Mas, e se tristeza do protagonista desaparecesse em decorrência do surgimento de outro amor acachapante, o que seria da segunda temporada? Pois, de um modo absolutamente crível, o ano dois de After Life amplia a melancolia de Tony, reiterando sua falta de perspectivas com tintas novas, assim tratando sensivelmente a gravidade do luto. Seria um tanto artificial se repentinamente ele conseguisse superar a dor lancinante na companhia de alguém capaz de, num passe de mágica, completar uma lacuna aparentemente perene. O jornalista do periódico local enfrenta um processo ainda mais confuso de angustia, justamente depois de entender como necessário o distanciamento dessa ideia obsessiva de que a vida se esvaiu junto às chances de Lisa vencer o câncer. Antes amparado aos trancos e barrancos por essa nova concepção de cotidiano, ele agora, exatamente ao tentar encontrar a saída do poço, se vê destituído desse pilar tortuosamente funcional. A série, então, compreende o andamento do pesar dentro de um diagnóstico ampliado, mantendo a memória como fundamento, vide as revisitas a episódios do passado para tentar encontrar conforto na nutrição da saudade.
A segunda temporada de After Life é mais melancólica e propensa a provocar choro. Sem lançar mão de sentimentalismos baratos, conduzindo o enredo pelos labirintos complexos da aflição do protagonista, a série possui alguns instantes excepcionais quanto ao entendimento de fragilidades humanas. Se na primeira temporada Ricky Gervais não escondeu a proximidade da conduta de Tony com a sua própria, ao menos a celebrizada em ocasiões demarcadas por episódios incisivos e potencialmente constrangedores aos interlocutores, dessa vez ele mergulha de outro jeito na personalidade embotada pelo sofrimento. À medida que entende o protagonista a partir dessa melhora paulatina com sintomas de piora, o roteirista e diretor Gervais oferece espaço aos ótimos coadjuvantes. São deliciosas as cenas do carteiro vivido por Joe Wilkinson com a trabalhadora sexual interpretada por Roisin Conaty. Eles formam um casal insólito e simpático. E continuam lindas e profiláticas as conversas com Anne (Penelope Wilton), uma espécie de anjo da guarda.
Outro dispositivo do roteiro para ressignificar Tony é a forma como ele observa os casos bizarros de gente que gostaria de aparecer na Gazeta de Tambury. Na primeira temporada, todas as visitas profissionais visavam apresentar peculiaridades que desvelavam ao protagonista o absurdo cotidiano. No fim das contas, ele se sentia superior aos que precisavam desesperadamente tentar conseguir seus 15 minutos de fama. Nesta segunda temporada, ele acaba desenvolvendo uma empatia bem maior pelos aspirantes à notoriedade. Diante de uma mulher que jura ter a capacidade de conversar com o gato de estimação, se entristece pela solidão gritante; conversando com uma viciada em cirurgias plásticas, faz questão de acalma-la, dizendo que sua estranheza não é maior que a de todo mundo; frente ao homem que colocou durante anos suas correspondências na caixa sanitária dos gatos, ele ultrapassa o asco e enxerga o isolamento depressivo que provoca tantas distorções.
Portanto, Tony começa a vislumbrar o outro de maneiras distintas, algo refletido também no trato diário com os colegas. Estes seguem atendendo a características muito específicas, até mesmo caricaturais, mas ganham terreno para expressar um pouco daquilo que escapa a uma primeira e superficial olhada. Paul Kaye, que vive talvez o pior psiquiatra do audiovisual recente (machista ao extremo), é realocado dentro do enredo, não mais convivendo com o protagonista, numa nova dinâmica que lança luz sobre Matt (Tom Basden). After Life continua sendo um programa acima da média entre os lançamentos frenéticos da Netflix, especialmente pela habilidade louvável para transitar organicamente entre comédia e drama, em meio a isso esquadrinhando os estágios do luto e postulando que é preciso cercar-se para não sucumbir. No fim das contas, é um elogio à amizade e ao amor como poderosos emplastros para vencer a miserabilidade da espécie. E, talvez, o cara vivido brilhantemente por Ricky Gervais precise mesmo perder outro ente querido para começar a se reconstruir, vagarosamente, sem arroubos solares vendendo a ideia de felicidade a qualquer preço. Por isso é tão bonito.
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