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Sinopse

Enquanto Earn, Paper Boi, Darius e Van estão às voltas com aventuras durante uma turnê europeia, outros personagens são atravessados pelas tensões raciais, econômicas e sociais no território dos Estados Unidos.

Crítica

Depois de um hiato de quatro anos que gerou muita expectativa, Atlanta retornou em grande estilo para a sua terceira temporada. Se antes a história acontecia na cidade norte-americana que dá nome ao programa, basicamente se revezando entre os quatro personagens principais, agora as coisas são um pouco diferentes. Earn (Donald Glover), Paper Boi (Brian Tyree Henry), Darius (LaKeith Stanfield) e Van (Zazie Beetz) estão na Europa vivendo aventuras enquanto o rapper aproveita as dores e as delícias de fazer uma grande turnê fora dos Estados Unidos. No entanto, o deslocamento nessa nova leva de episódios não é apenas territorial, mas também relativo à estrutura. A série se transforma quase numa antologia sobre aspectos da branquitude nessa temporada em que os protagonistas aparecem esporadicamente. Então, o programa expande a sua forma de encarar as tensões raciais nos Estados Unidos ao permanecer no país falando de outros homens e mulheres brancas reagindo a questões diversas ligadas ao racismo estrutural norte-americano. Enquanto isso, os quatro protagonistas vivenciam situações na Europa que vão desde o desaparecimento de um telefone celular com algo muito importante ao fechamento de uma loja de comida tipicamente nigeriana engolida pelo capitalismo selvagem mantido pela nova geração de alienados investidores. O nonsense permanece rondando por ali.

As aventuras de Earn, Paper Boi, Darius e Van são marcadas por situações em que o comum descamba ao absurdo ou por ele é atravessado. Na primeira vez em que aparecem na terceira temporada, há uma confusão geográfica, a soltura de Paper Boi da prisão, um bebê fazendo blackface (prática teatral que consistia em atores brancos se pintando com o carvão para representar personagens negros de forma caricatural), além de Darius e Van seguindo a etiqueta de uma jaqueta encontrada num brechó que os leva a um funeral – e que Darius acredita ser de Tupac Shakur. E em pouco mais de 30 minutos, ainda temos o cantor se recusando a fazer seu show a uma plateia inteira fazendo blackface. Há uma escalada muito interessante das situações prosaicas (acordar meio desorientado e ir montando as peças aos poucos) à imagem quase surreal do público incorrendo numa prática ofensiva para supostamente demonstrar amor por seu ídolo. Esse dado bizarro também aparece de modo intenso no terceiro episódio, no qual basicamente os personagens principais são colocados numa festa labiríntica repleta de ricaços extravagantes que representam uma elite econômica e cultural que reverencia excessos como forma de demonstrar poder e superioridade. Nas duas primeiras temporadas, a prioridade era a experiência afro-americana. Nesta, é a denúncia ácida dos aspectos ridículos da branquitude.

Então, a mudança geográfica faz bastante sentido em Atlanta, especialmente esse desembarque no continente formado por países que colonizaram e oprimiram nações ao redor do mundo. De um lado, há os protagonistas negros encarando os caprichos de homens e mulheres brancos europeus, sobretudo para alimentar uma crítica ao sequestro da narrativa negra em prol da manutenção do capitalismo. Como o ataque ao racismo da indústria da moda no sexto episódio, em que Paper Boi é contratado por uma marca londrina para “se desculpar adequadamente” com a comunidade negra por conta de um lançamento considerado ofensivo. Paper Boi se sente desconfortável com a situação à medida que ela lhe parece apenas fruto de interesse econômico, enquanto um escritor/ativista o aconselha a aproveitar o momento e encher o bolso de grana. Como se costume, a série não encerra as discussões, abre espaços para que elas se tornem complexas. Essa apropriação do discurso negro aparece também no episódio em que Darius leva alguém para conhecer um restaurante tipicamente nigeriano. A compra do espaço e a transformação numa franquia de food truck expressa bem a melancolia do apagamento da cultura então transformada em commodity para o enriquecimento dos brancos que dela se apropriam. Aliás, esse é o momento mais melancólico dessa temporada repleta de estranhezas.

Já do outro lado, temos personagens avulsos vivendo as próprias aventuras nos Estados Unidos, sem ligação direta com aquelas figuras que conhecemos. Para se ter uma ideia, o episódio que abre a primeira temporada mostra um menino negro dado à adoção pela mãe cansada de suas travessuras (outra situação quase irreal que tem força simbólica). O menino passa a ser criado por um casal de lésbicas que ostentam fortemente um discurso politicamente correto relacionado à sustentabilidade ambiental, mas que na verdade são como duas bruxas opressoras de crianças consideradas escravas. Como se costume, Atlanta não se afasta das controvérsias, as encara com vigor e rara coragem na nossa atualidade. A ideia é construir dois arquétipos bem exagerados de pessoas com discursos politicamente adequados, mas de ações que contradizem seu suposto progressismo. A mensagem é clara: o racismo ainda é uma chaga entranhada no tecido social norte-americano e nem mesmo o mais descontruído dos indivíduos está livre de ter atitudes atreladas ao seu aspecto estrutural. Claro que essa colocação é envelopada pelo nonsense com toques de filme de horror. No sétimo episódio há o reforço das diferenças culturais dos grupos que formam os Estados Unidos. Nele, um casal branco leva o filhinho ao funeral da babá negra. Em meio às discrepâncias da experiência branca e negra do país norte-americano, o menino demonstra conhecimentos que apontam ao afeto transmitido pela babá.

Mas, antes que a terceira temporada se encerre de modo bastante peculiar com uma aventura de Van pela França, com direito a uma nova personalidade (construída milimetricamente a partir de vários clichês da extravagância europeia), Atlanta tem dois episódios em que a abordagem do discurso racial passa pelo filtro dos mecanismos capitalista. Num deles, uma decisão judicial cria tensão social ao encorajar os descendentes de escravizados a cobrar dos descendentes dos escravizadores uma quantia indenizatória. Mais uma vez, o protagonista é um homem branco de classe média oprimido por uma mulher negra empoderada pela lei. É aquela velha história do “parece que o jogo virou”, com um sistema criando ambientes para algo que pode parecer injusto se tornar comum. No outro desse episódios que mostram a branquitude em crise por conta do fator econômico, um estudante racista reivindica sua negritude (seu pai é um homem negro) para pleitear a vantajosa bolsa universitária oferecida a um empresário bem-sucedido e preocupado com a educação de afro-americanos. Portanto, mesmo quando está longe dos protagonistas, criando situações com personagens avulsos que em nada parecem se relacionar com Earn, Paper Boi, Darius e Van, a série exerce a vocação de provocar discussões, remexendo territórios sensíveis e criando associações poderosas para renovar o brilhantismo visto antes.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.