Crítica
É interessante rever este segundo episódio da primeira temporada de Black Mirror (que em tempos de internet, é quase idosa ao datar o longínquo ano de 2011), e perceber que ele inicia com um plano de Bing (Daniel Kaluuya, que tem seu olhar marcante muito bem explorado) mergulhado em absoluta escuridão – esteticamente muito semelhante a um dos momentos mais icônicos de Corra! (2017), também protagonizado pelo ator. Mas se no longa de Jordan Peele a escuridão é um simbolismo escrachado das sensações experimentadas pelo personagem principal, aqui ela surge como um recurso narrativo voltado ao espectador, pois é preciso estabelecer desde os segundos iniciais a solidão e a esterilidade que cercam Bing – e não deixa de ser curioso traçar paralelos entre as duas obras enquanto recurso de análise, tendo em vista quem veio antes de quem e o objetivo central do seriado, que é trabalhar não uma visão futurista, mas sim um futurismo.
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Confinado num “quarto” (o termo mais apropriado seria “cela”) de pouco mais de dois metros quadrados, cujas paredes são revestidas de telas do chão até o teto, Bing é um dos diversos moradores de uma espécie de instalação onde as pessoas parecem se dividir em três classes sociais distintas: aqueles mais acima do peso, que trabalham como faxineiros; os habitantes com um físico mais padronizado, que pedalam em bicicletas o dia inteiro para produzir energia; e, por fim, aqueles com uma beleza mais apelativa, que estrelam toda a sorte de programas de TV para distrair a classe do meio durante seu período de trabalho. Conforme produzem, os habitantes do lugar ganham pontos utilizados para trocar por comida e até para se inscrever em programas de televisão, único modo de mobilidade social aparente. É nesse cenário que Bing encontra Abi (Jessica Brown Findlay), garota que ele ouve cantando no banheiro, e por isso decide doar sua grande quantidade de pontos para que ela possa concorrer no Hot Shot, show de talentos deveras concorrido.
A decisão tão espontânea parece maluca mesmo para os personagens, e Abi chega a contestar o rapaz sobre isso. Mas como não entender as motivações de Bing? Pois, se há um episódio de Black Mirror que faz jus ao título da série é este: os tais espelhos pretos, que se referem às telas a que somos recorrentemente submetidos na atualidade, preenchem quase todos os espaços habitados pelos personagens, e, mesmo as superfícies que não são monitores, ainda assim se assemelham a telas desligadas, aguardando serem utilizadas. Além disso, até por uma óbvia contenção de orçamento, o diretor Euros Lyn jamais permite que vejamos muito além do cenário imediato – é o quarto minúsculo, o elevador apertado (que ele ainda torna mais claustrofóbico ao enquadrar seu interior de cima para baixo, em mais de uma vez), o hangar das bicicletas ou a sala de espera que mais parece um corredor improvisado onde os candidatos do Hot Shot se apinham enquanto ensaiam seus talentos. O único momento em que nos permite um quadro mais geral da instalação chega justamente para ilustrar os argumentos de Bing. Ao invés de mostrar um espaço aberto que reconfortaria o espectador depois de tantos planos e cenários fechados, só faz angustia-lo mais, ao revelar uma infinidade de níveis repletos de hangares de bicicletas onde as pessoas vivem sempre as mesmas rotinas enfadonhas.
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Aliás, brincando novamente com o futurismo da série, Fifteen Million Merits busca comentar com tudo isso tópicos hoje em voga em produtos culturais como Rick e Morty (2013-) e Blade Runner 2049 (2017). Ou seja, que a super-celebração do individualismo acarreta uma nova massificação, que não há mais diferentes, pois todos são igualmente singulares. É um comentário ácido para além da tecnologia envolvida, e que mergulha mais nos seus efeitos cognitivos e comunicacionais: com as potencialidades tecnológicas, tudo que é novo e chamativo é rapidamente engolido e absorvido como parte do todo que se alimenta da segmentação de nichos. Nesse contexto, é preciso encontrar o equilíbrio entre o niilismo de se entender como uma pequena parte de um universo maior, e a arrogância de se perceber como um ser único. Em outras palavras, é preciso se compreender como um indivíduo repleto de individualidades, mas que está inserido numa comunidade de outras pessoas igualmente individuais – e nela, você pode ser “anyone”, desde que seja qualquer um que saiba o que é o “amor”, como canta a música escolhida por Abi (e que num outro exercício de futurismo interessante, é a mesma que serve de elemento importante do episódio Crocodile, da quarta temporada de Black Mirror).
As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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