Crítica
A série Black Mirror ficou marcada, em suas quatro temporadas anteriores, por combinar avanços tecnológicos com cenários não muito distantes no futuro, o que aumentava o grau de realismo – e o nível de perturbação gerado por tais interações. Como reagir, portanto, quando logo no primeiro instante de Smithereens – segundo episódio da quinta temporada – um letreiro informa ao espectador que a trama a ser acompanhada se passa em 2019 – ou seja, no presente? O amanhã é hoje. E talvez esse seja o elemento mais instigante – e reflexivo – deste novo capítulo que não se abre aqui, pois já o estamos vivendo há um bom tempo, mesmo que muitos ainda não tenham percebido.
Em Smithereens, Chris Gillhaney (Andrew Scott, da série Fleabag, 2019) é um motorista de aplicativo cujo ponto fica em frente à empresa que dá nome ao minifilme (com 70 minutos, é praticamente um longa-metragem). Logo se percebe que há um motivo para ele estacionar sempre no mesmo lugar e, curiosamente, só aceitar corridas de pessoas que saem do prédio observado. A cada novo passageiro, segue-se a mesma conversa fiada padrão, até que surge a pergunta inevitável: “você trabalha na Smithereen?”. Uma, duas negativas. Porém, quando Jaden (Damson Idris, de O Passageiro, 2018), bem vestido e indo rumo ao aeroporto internacional, lhe oferece uma afirmativa, o rumo dos dois será alterado irrevogavelmente.
É importante ter cuidado daqui em diante com os spoilers, mas basta saber que o objetivo de Chris é entrar em contato com Billy Bauer (Topher Grace, em uma composição interessante). Ao apenas mencionar esse nome, todos reagem com espanto. Ninguém demonstra a mínima indecisão a respeito da sua identidade. “Quem? ‘O’ Billy Bauer?”, é o que respondem com incredulidade. Todo mundo sabe de quem se trata. Ninguém parece acreditar que ele sequer exista, quem dirá possa ser contatado para uma simples conversa por telefone. O pedido é absurdamente banal. Ao mesmo tempo, tratado como se fosse a mais absurda e impossível das requisições. Transitar por esse limite é a grande surpresa retirada da cartola do diretor James Hawes, que antes havia trabalhado em séries como Genius (2017) e O Alienista (2018).
Até esse ponto, no entanto, é de se questionar onde a tecnologia entra como elemento fundamental na trama. Pois é então que se dá a reviravolta. Smithereen é uma rede social, tal qual o Facebook, e Billy Bauer é o seu Mark Zuckerberg, o homem por trás de tudo isso. O que teria acontecido ao Chris e quais suas intenções com aquele que deu origem a todo esse novo universo são camadas que vão sendo reveladas aos poucos, como nas melhores histórias de detetives. Há muita tensão envolvida, além da presença de policiais, repórteres, possíveis vítimas e empresários em ambos os lados do oceano Atlântico. As dimensões crescem exponencialmente à medida que o tempo vai passando. Não há muito o que fazer. É preciso agir, e rápido. Afinal, como o próprio protagonista faz questão de frisar, foram apenas alguns segundos, mas suficientes para que tudo fosse dado como perdido.
James Hawes já havia dirigido o episódio Hated in the Nation (Black Mirror T03 E06, 2016), que também abordava a questão das redes sociais e sua suposta influência no cotidiano atual. Em Smithereens ele volta à mesma temática, porém em um tom mais trágico e menos sensacionalista, por assim dizer. Ao mesmo tempo, tal decisão torna a questão ainda mais próxima do espectador. Outro que faz um excelente trabalho é Andrew Scott, geralmente um ator tão subestimado, que aqui encontra uma oportunidade rara para fazer jus à sua posição de destaque. No mais, resta a confirmação de que Charlie Brooker – criador da série e roteirista de todos os episódios, inclusive deste – está cada vez mais deixando de lado o espetáculo, para se focar no âmago e no impacto dessas mudanças – sejam elas improváveis ou não – na vida destes personagens. Que tanto podem estar no âmbito da ficção, como muito bem no lado de cá da telinha.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.