Crítica


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Sinopse

Depois de uma noitada, uma garota acorda sentindo sintomas bem diferentes dos de uma ressaca normal. Logo descobre que foi infectada por um vírus transmissível pelo beijo. Na pequena cidade rural em que ela mora, isso cria um clima de tensão, exatamente porque pode lançar luz sobre segredos inconvenientes.

Crítica

O projeto de Boca a Boca certamente surgiu muito antes de qualquer sinal de uma pandemia mundial. No entanto, é curioso que a trama sobre uma infecção misteriosa despertando a paranoia de uma cidadezinha seja lançada enquanto o Brasil sofre para lidar com a Covid-19. Na ficção, um possível vírus é espalhado pelo beijo, gerando todo o tipo possível de teorias conspiratórias, desinformação e slut shaming. Após uma festa em que praticamente todos os adolescentes da cidade se beijam, sem distinção de gênero, está armado o cenário para o caos iminente. O prefeito local se preocupa muito mais com a economia e as boas notícias na imprensa, os grupos religiosos buscam bodes expiatórios, os jovens da cidade são considerados culpados por aparentemente trazerem o vírus de longe. As semelhanças com o cenário atual são imensas, sobretudo no âmbito humano: passamos a ter receio do contato humano. Em paralelo, os rebeldes exibem as festas nas redes sociais, para comprovar que não têm medo de uma gripezinha, quer dizer, de uma infecçãozinha. Não é difícil imaginar em qual candidato à presidência teria votado a burguesia conservadora de Progresso.

Por estes motivos, o projeto guarda uma relação muito mais tênue com o real do que se imaginaria a princípio. Através de sua fábula de contaminação, a narrativa aborda temas fundamentais como o machismo, a dependência das redes sociais, a liberdade sexual e de gênero, a exploração de patrões sobre empregados, as monstruosidades provocadas pelo capitalismo desregulado (representado pela grotesca imagem de um monstro geneticamente modificado). A caseira da fazenda é uma mulher negra (Grace Passô), o funcionário responsável pelo cuidado do gado vem do Nordeste (Thomas Aquino), o local é rigidamente dividido entre a prosperidade dos “pais modelo”, como se intitulam num grupo de WhatsApp, e os moradores da comunidade pobre e periférica. Fala-se em “doutrinação”, em fake news, na dualidade sede/colônia... Parte-se de um princípio desigual por definição, e marcado por bipolaridades: homem ou mulher, sagrado ou profano, centro ou periferia, branco ou negro, heterossexual ou homossexual. Através do pequeno vilarejo de nome imponente, Esmir Filho e Juliana Rojas traçam um retrato pouco otimista de um Brasil em crise de identidade.

Diante da proximidade com a política atual, a série surpreende ao optar pela saída mágica quando os referentes se tornam próximos demais de nossa experiência cotidiana. A doença se manifesta por manchas na boca, mas também traços em formas de veias que brilham no escuro, e deixam os olhos apagados, muito próximos da representação clássica dos zumbis. O possível antídoto provém de um líquido misterioso que funciona apenas quando entes queridos invocam lembranças da infância. Enquanto a medicina se contenta em tratar os sintomas e retardar a morte dos jovens, o misticismo chega mais perto da cura por meio de experiências transcendentais. Uma aparição monstruosa na floresta pode ou não corresponder a um fenômeno real. Manu, uma das alunas desaparecidas, talvez não esteja desaparecida de fato. Os criadores preferem lidar com o simbólico ao invés do realista. A maior prova está na construção de Progresso, que jamais convence enquanto cidade real: somos confrontados a dezenas de planos amplos das ruelas de paralelepípedos, vazias, com as portas sempre fechadas. Não há comércios, não há pessoas pelas ruas, não há vida para além da escola e da parte interna das casas. Mesmo a escola elitizada tem aulas ministradas dentro de um galpão agrícola, enquanto o pátio é coberto por feno, palha ou material semelhante. Parte-se para uma construção alegórica, mera alusão a uma cidade real.

Uma das principais manifestações do universo lúdico se encontra no tratamento das cores. Boca a Boca demonstra verdadeira obsessão pelas cores azul e rosa, que dominam tanto os locais onde pareceriam verossímeis, até momentos de maior estranheza: os cabelos azuis de Chico (Michel Joelsas), o uniforme escolar rosa dentro da instituição conservadora, o hospital escuro iluminado por cores azul-neon, os tons neon da igreja, dos quartos escuros, das festas. Há um caráter lúdico e escapista na estetização da direção de fotografia e da direção de arte. Será interessante descobrir o que os pesquisadores de cinema têm produzido a respeito deste cinema neon queer, com tendência a representar a fluidez de gênero e sexualidade, especialmente na adolescência, por intermédio das luzes neon. Boi Neon (2015), Tinta Bruta (2018), Divino Amor (2019) e exemplares estrangeiros como Fluidity (2019) e Euphoria (2019) relacionam o neon azul-rosa à permeabilidade de identidades e corpos. Aliás, os personagens demonstram uma sexualidade fluida: ninguém é definido como heterossexual ou homossexual. Os jovens são vistos beijando um rapaz ou uma menina, para depois experimentarem novas bocas. Mesmo termos, digamos, contemporâneos (gouinage, frottage), são introduzidos para deixar claro que existe um universo extenso entre as categorias “homem” e “mulher”, entre “heterossexual” e “homossexual”.

Em termos de estrutura, Boca a Boca se aproxima da primeira temporada de Lições de um Crime (2014), onde uma festa se tornava o evento traumático ao qual a narrativa voltava o tempo inteiro, para preencher as lacunas do suspense. Na série norte-americana, tratava-se de uma comemoração do colégio, com cheerleaders sendo jogadas sobre uma fogueira. No caso do projeto nacional, trata-se da rave na floresta, onde todos se beijam, mesmo aqueles que demonstravam antipatia um pelo outro, devido aos efeitos de uma droga misteriosa. Esta configuração faz com que a montagem retorne excessivamente à tal festa, apostando numa quantidade generosa de beijos vistos e revistos, e depois simulados (com plástico), representados (via webcam), ridicularizados (o cuspe na boca do inimigo), retomados enquanto redenção (de pai para filho, após uma agressão) ou paixão desesperada (de Chico em Maurílio). A série transborda de afeto através de tantos beijos descompromissados, tantos carinhos nos cabelos e abraços entre amigos, e na farta nudez dos atores principais, embora os personagens façam pouco sexo de fato. Há muito estímulo para pouco gozo, muita ternura para pouco clímax.

Esta impressão também decorre da multiplicação de símbolos que nem sempre se desenvolvem. O movimento “#Retrocesso” possui forte potencial, porém surge e desaparece na trama sem deixar traços. Uma jovem estudante de genética jamais se transforma em personagem autônoma, carregando uma função acessória quando o roteiro necessita de explicações científicas. Um suicídio filmado ao vivo não surte qualquer efeito político, emocional ou policial, enquanto o despejo de uma funcionária negra de sua casa é acatado com uma placidez inverossímil. A noção da “seita” e as ações coordenadas dos pais burgueses devem ganhar real significado apenas na segunda temporada, ao passo que uma manipulação biológica extremamente complexa surge como milagre, sem a noção de processo. O mesmo vale para o tal elixir cor de mel, desenvolvido milagrosamente. Existe certa aparência de inevitabilidade ou conformismo no decorrer da trama: os adolescentes começam a morrer, mas os médicos se limitam a tratar os sintomas ao invés de buscar a cura, os pais jamais pensam em levar as crianças às cidades vizinhas, as aulas continuam como se nada tivesse acontecido, ignorando-se as carteiras vazias a cada dia. Talvez esse “novo normal” pós-pandemia (em plena pandemia, na verdade) constitua o elemento mais perturbador da série.

Apesar da estética imponente, o projeto coloca o elemento humano em primeiro lugar. Os roteiristas trabalham com esmero a personalidade de cada personagem, tanto os principais quanto os coadjuvantes. Os pais poderiam facilmente se tornar os vilões (no caso de Denise Fraga, Bruno Garcia e Flávio Tolezani) ou mártires (no caso de Grace Passô), porém a narrativa faz questão de borrar estes traços. Os atos violentos são praticados por ignorância ou medo, jamais uma natureza inerentemente maligna. A representação também foge da divisão em núcleos narrativos, tão comum em telenovelas e séries próximas do formato televisivo. Todos os personagens estão intimamente interligados, pertencendo a um único núcleo. Por mais incômodo que seja assistir a personagens de 17 anos interpretados por atores de 24, 25 anos de idade (o audiovisual precisa superar esta barreira da idade o quanto antes), ao menos Michel Joelsas e Caio Horowicz demonstram ampla variação na construção dos protagonistas. O nível das atuações está homogêneo, sem o conflito entre estilos diferentes. O mesmo pode ser dito dos diretores: embora os quatro primeiros episódios sejam dirigidos pelo showrunner Esmir Filho, e os dois últimos fiquem a cargo de Juliana Rojas, o ritmo, estilo e tom das imagens permanece inalterado.

Por fim, Boca a Boca transparece o refinamento da produção, sinal de um roteiro maduro e de profissionais competentes nas áreas criativas e técnicas. O bom resultado se deve menos à embalagem ultra brilhante, pop e colorida – seria possível obter algo igualmente elegante e eficaz dentro do naturalismo -, do que à coerência entre discurso e forma. A primeira temporada ainda deixa muitas dúvidas quanto à origem, meios de transmissão e evolução da doença misteriosa, combinando elementos científicos e esoterismo. O maior desafio da série consiste na transição entre esses dois mundos: o irmão autista de Chico também revela poderes sensitivos, uma fera aparenta levitar na floresta, e um possível vírus pode ser combatido por remédios e por amor. Há elementos de suspense, terror, fantasia, realismo fantástico e social, drama queer adolescente, em apenas seis episódios. Talvez o discurso abarque mais do que consegue aprofundar, porém possui a consciência de seu potencial ao criar um excelente desfecho, com ganchos potentes para a segunda temporada. Ao invés de atar todos os seus fios soltos, a série resolve apenas o necessário, deixando mistérios no ar e acrescentando tantos outros nas cenas finais. É ótimo encontrar projetos nacionais dotados de tamanha ambição, mais preocupados em provocar o espectador do que agradá-lo a qualquer preço.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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