Crítica


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Sinopse

Bancário infeliz que mora em São Paulo sem lembranças de sua infância no sertão nordestino do Brasil, Ubaldo volta à sua cidade natal por conta da morte do pai. Ele descobre uma herança, duas irmãs e um destino que deve seguir.

Crítica

Polícia mata gente inocente.
E quem era inocente hoje já virou bandido,
pra poder comer um pedaço de pão todo fodido.
Banditismo por pura maldade, banditismo por necessidade
”.

As palavras acima foram cantadas por Chico Science & Nação Zumbi, em 1994. Pré ou pós, os rios da desigualdade social brasileira continuam a seguir seus cursos naturais. E não poderia ser diferente, pois pouco foi feito para que esses contornos fossem transformados. Entretanto, principalmente nas últimas duas décadas, faíscas de insurreição multifacetada podem ser conferidas no nordeste, uma das regiões mais castigadas por essa conjuntura no país. Cada vez mais, seus cidadãos se apropriam de suas narrativas. Cangaço Novo é um desses exemplos. Difundida como um eletrizante seriado de ação, a produção é, preferencialmente, um manifesto contra a repressão.

Na trama, seguimos a saga de Ubaldo (Allan Souza Lima). Na cidade de São Paulo, após ser expulso do exército e também demitido de seu emprego como bancário, ele não sabe como custear o caríssimo tratamento médico de seu pai adotivo, Ernesto (Ricardo Blat). Ao encontrar uma carta escondida nos pertences deste que lhe amparou, Ubaldo descobre que pode ter alguma “herança” a receber no lugar onde nasceu e saiu ainda criança: a pequena cidade de Cratará, interior do Ceará. Ao chegar na região, descobre que seu pai biológico, Amaro Vaqueiro (encarnado pelo próprio Allan), foi um famoso cangaceiro de espírito Robin Hood. Em meio à isso, o protagonista conhece outras duas herdeiras dessa espécie de divindade em relação à família Vaqueiro, suas irmãs Dinorah (Alice Carvalho) e Dilvânia (Thainá Duarte). Com pouca relutância, dada a pobreza e sentimento de impotência, Ubaldo ingressa no cangaço.

A partir daí, passamos a acompanhar incursões criminosas do rapaz junto aos parceiros. Isso, com muitas desconfianças entre eles. Essas tensões, junto à intrigas políticas locais, tomam conta da maior parte das sequências. Até que, é claro, as usurpações do grupo acontecem. A respeito de questões técnicas, o primor das cenas em que há explosões, perseguições de carros e trocas de tiros são admiráveis. Inclusive, poderão fazer o espectador se perguntar o porquê de termos demorado tanto a encontrar algo tão notável dentro do gênero no Brasil, já que, pelo jeito, sempre esteve por aqui. Aliás, a labuta é digna de comparações, em âmbito internacional, com projetos como Narcos (2015-2017) ou Peaky Blinders (2013-2022). Vale ressaltar a presença de Jordi Casares na equipe. De origem espanhola, o coordenador de dublês já atuou em filmes destacados, como em títulos da saga 007: James Bond e - até! - Titanic (1997).

Entretanto, nenhum desses esquemas funcionaria sem atuações certeiras. O personagem principal, por exemplo, é progressivamente modificado pelas desilusões. O silêncio, os olhares e o comedimento em agir na hora correta são elementos que tornam Ubaldo o fio condutor perfeito para os procedimentos dos demais. Um esclarecimento hábil que torna esse, sem dúvidas, o melhor trabalho da carreira de Souza Lima até então. Já Alice, desponta como atriz de imponência ímpar. Dona de um olhar amedrontador, e cativante (!), ela arma um modelo Yin-Yang da dupla Ubaldo-Dinorah. Ambos destinos se entrelaçam e robustecem propósitos capazes de prender o espectador episódio após o outro. Correndo por fora, Dilvânia, a terceira irmã, é o cordão afável que segura as pontas selvagens, num trabalho harmonioso de Thainá. Coadjuvantes de luxo que enriquecem a empreitada. Marcélia Cartaxo, Adélio Lima, Hermila Guedes e Luiz Carlos Vasconcelos são alguns dos nomes que trazem composições essenciais ao enredo.

E nesses arranjos, culturalmente, é interessante perceber três cânones utilizados pelos roteiristas. Nesse triângulo, a ponta de cima é o cangaço, sob versões contemporâneas de Lampião e Corisco, promovendo nítida revitalização da imagem clássica dos jagunços. Repetidamente retratados como anti-heróis, aqui há mais discussões em relação aos traumas/consequências dos pistoleiros do que propriamente um maniqueísmo simplificado. Em seguida, as bases: os elementos que remetem ao movimento antropofágico brasileiro e o êxodo nordestino. Ubaldo migra, vive, frustra, retorna e se reencontra. Tudo para perceber que a suposta vilania de seu “sangue” pode ser entendida como questão de ponto de vista (lembram de Chico Science & Nação Zumbi?). Alguns podem argumentar que há "romantização" demasiada, mas basta ancorar as perspectivas nas perdas emocionais e físicas de cada indivíduo retratado para analisar o quadro de uma forma mais sofisticada, sem nunca esquecer das relações palpáveis que é possível fazer.

Há aqui o símbolo de revisões coletivas, que fincam bandeiras de êxodos às avessas. Desde sempre, migrantes nordestinos buscaram vencer a desigualdade social em outras regiões com carinho, simpatia e, principalmente, manifestações culturais. Em situações, por vezes, até subservientes. Essa era está findando, pois a altivez se fortalece em atos contínuos. Cangaço Novo não é somente o carimbo da qualidade do audiovisual brasileiro, mas também selo de elevação conceitual de uma gente brilhante.

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Fanático por cinema e futebol, é formado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Feevale. Atua como editor e crítico do Papo de Cinema. Já colaborou com rádios, TVs e revistas como colunista/comentarista de assuntos relacionados à sétima arte e integrou diversos júris em festivais de cinema. Também é membro da ACCIRS: Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul e idealizador do Podcast Papo de Cinema. CONTATO: [email protected]
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