Crítica


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Sinopse

Empenhado em se tornar uma pessoa melhor, Miles Elliot decide começar um tratamento especial e descobre que foi substituído por uma nova e aperfeiçoada versão - revelando que seu pior inimigo é ele mesmo.

Crítica

Esta pequena série cômica parte de uma premissa fascinante. A questão da clonagem tem sido frequentemente abordada pelo prisma da catástrofe ética e tecnológica, aplicada a futuros apocalípticos e cautionary tales – vide os recentes Cópias: De Volta à Vida (2018) e Altered Carbon (2018 -), apenas para citar alguns. Associamos os clones a robôs, à decadência social, ao trabalho forçado. Outra possibilidade dentro da clonagem diz respeito à eugenia e à busca do corpo perfeito, novamente em paralelo com o aspecto maquínico e brutal das sociedades capitalistas. No entanto, Cara X Cara desenvolve um ponto de vista totalmente diferente, dentro do qual a técnica não interessa – nunca se sabe ao certo como as pessoas são clonadas – e tampouco a melhoria do indivíduo e/ou da sociedade. Miles (Paul Rudd) é clonado sem saber disso, enquanto busca auxílio psicológico.

A noção da duplicidade para melhorar a autoestima é tão insana quanto potencialmente leve em relação ao aspecto geralmente catastrófico da ficção científica. Os criadores Jonathan Dayton e Valerie Faris desenvolvem um local muito interessante onde o processo ocorre: mistura de clínica clandestina, sociedade secreta e salão de manicure gerenciado por asiáticos, o “spa” onde Miles busca encontrar um novo estado de espírito brinca com diversos aspectos da precariedade social e psicológica de uma vez só. O lugar representa ao mesmo tempo uma proeza da ciência e sua decadência, um serviço milagroso e um ato perigoso, dentro do qual, descobre-se, as pessoas originais são mortas e despejadas na natureza, apenas para o clone assumir o lugar do material de origem, ignorando a sua própria condição de clone. Não estamos muito distantes das comédias sombrias e absurdas de Yorgos Lanthimos (O Lagosta, 2015, A Favorita, 2018), que também abordam a monstruosidade dos duplos e dos alter-egos.

Ora, este aspecto grotesco é diluído na aparência de “cara comum” de Paul Rudd. Muito distante do porte heroico do Homem-Formiga, ele representa pela enésima vez o sujeito nem belo nem feio, nem muito bem-sucedido, nem particularmente fracassado. Miles constitui o sujeito médio por excelência, preso numa casa de subúrbio, com a esposa que ama, mas cujo relacionamento esfriou. Enquanto as fábulas tecnológicas são aplicadas a personagens “escolhidos” pelo destino, esta afeta um tipo que poderia permanecer anônimo, sem deixar traços marcantes na sociedade em que se insere. A sobrevivência do corpo original ao lado do clone constitui um erro, uma anomalia aleatória (em estilo The Good Place, por exemplo) diante da qual o protagonista precisa reagir, da maneira mais mundana possível: admirando a cópia, temendo ser substituído por ela, competindo com a mesma, travando uma batalha e quem sabe se aproximando de uma amizade.

Obviamente, o relacionamento entre os dois Miles constitui uma metáfora entre estados de espírito do mesmo indivíduo, entre a depressão e a euforia, ou entre corresponder ao “sonho americano” (ter a esposa perfeita, a casa perfeita, a promoção ideal no emprego) e sucumbir à depressão diante do fracasso em concretizar essa pressão social. Através de oito curtos episódios, a temporada inicial explora uma série de símbolos preciosos (o aparador em madeira, a coluna dentro de casa, o colega competitivo dentro da empresa, o livro escrito pelo personagem) que são ressignificados ao longo da trama. A direção se mantém discreta, porém brincando de maneira eficaz com repetições, transparências e reflexos para refletir a condição da duplicidade.

Como se poderia esperar dentro deste registro, parte considerável do sucesso da empreitada depende do talento de Rudd em interpretar dois tipos igualmente comuns, embora opostos, sem cair na caricatura. O resultado é impressionante: mesmo sem efetuar nenhuma mudança radical nos dois Miles (nada de um corte de cabelo totalmente diferente, ou roupas em estilos muito distintos), o ator consegue construir duas personalidades separadas pelos suspiros, pela expressão facial e postura corporal. É delicioso perceber as diferenças entre os Miles, e especialmente chegar à parte inevitável em que um tentará se passar por outro, caso em que os homens verossímeis interpretam, por sua vez, uma versão caricatural um do outro. O abismo da metalinguagem é rico em proposições que o ator encarna muito bem. Ele tem à sua frente uma atriz excelente, Aisling Bea, fornecendo ao jogo cênico diversas variações entre o desconforto e a inadequação diante dos dois maridos. As interações entre ambos – incluindo a bela cena de dança – são excelentes.

Por fim, Cara X Cara consegue ser não apenas divertido, mas também comovente. O protagonista possui conflitos reais e de fácil identificação, apenas solucionados da pior maneira possível. Ao explorar a clonagem dentro de uma fábula, Dayton e Faris tornam o tema realista, próximo de qualquer cotidiano de classe média, desvestindo a ficção científica de sua aura autoimportante, e também do prisma unicamente paródico. Existe evidente carinho da série por Miles, pela esposa Kate e pelo belo romance que os dois já viveram juntos. Os seres humanos ainda soam tridimensionais e falhos, razão pela qual a tragicomédia da duplicidade se resolve sem vaidades da direção, apenas um aceno discreto ao realismo fantástico.

É certo que a premissa poderia ir muito mais longe em sua imaginação da clonagem: como ficam as outras pessoas clonadas, o que aconteceria quanto toda a sociedade descobrisse esse serviço, que outros casos de cópias convivendo com os originais existiriam por aí? No entanto, os criadores e o diretor Timothy Greenberg preferem manter o tema em sua esfera íntima, psicológica. Ao invés de se enfrentarem até a morte, o roteiro encontra uma maneira simbólica de fundi-los novamente. Contra o sacrifício ou o duelo mortal, oferece-se o renascimento. Em outras palavras, para quem esperava da clonagem não-consentida uma fábula mordaz sobre a desumanização, a série cômica oferece uma variação terna da conciliação consigo próprio. O procedimento, para Miles, se torna menos científico do que terapêutico.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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