Cem Anos de Solidão :: Parte 1
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Camila Brugés, Albatros González, Jose Rivera, Natalia Santa
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Cien Años de Soledad
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2024
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Colômbia
Crítica
Leitores
Sinopse
Cem Anos de Solidão se passa na pacata cidade de Macondo, na América do Sul. Nela, sete gerações da família Buendía vivem o amor, o esquecimento e a impossibilidade de fugir do passado e do próprio destino. Dramas, transformações sociais, nascimentos e mortes.
Crítica
Num primeiro momento, a iniciativa de traduzir em formato audiovisual uma das obras-primas da literatura latino-americana parecia algo beirando a maluquice. Afinal de contas, Cem Anos de Solidão é um livro complexo, com cronologia não linear e inúmeros personagens se cruzando durante conturbadas sete gerações da família Buendía. Isso sem contar a dificuldade de transpor às telas o realismo mágico pelo qual o autor Gabriel García Márquez ficou conhecido. São tantos desafios e obstáculos para fazer algo minimamente condizente com a grandeza do original que aos homens e mulheres de bom senso o mais indicado seria não mexer nesse vespeiro. Porém, felizmente o mundo também é feito de desbravadores corajosos dispostos a lutar contra os mais temíveis monstros. Neste caso, artistas comprometidos com os aspectos fundamentais de uma história que começa no casamento entre dois primos precocemente amaldiçoados pela morte e marcados pela crendice de que seus filhos poderiam nascer com rabos de porco. Cem Anos de Solidão é muito surpreendente na medida em que consegue o aparentemente impossível: ser reverente à obra de García Márquez, mesmo tomando liberdades inerentes à transposição de algo originalmente literário para a sua equivalente representação audiovisual. A mais sentida das mudanças é contar a história de maneira linear, o que parece um acerto rumo ao sentido épico.
Ficar comparando série e livro seria um exercício intelectual um tanto vazio. Fujamos disso. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, como diria a sabedoria popular. O que os criadores Camila Brugés, Albatros González, Jose Rivera e Natalia Santa buscaram foi justamente ajustar os acontecimentos e o estilo da escrita genial de Gabriel García Márquez em termos audiovisuais. Eles respeitam acontecimentos e personagens, mas também tomam a liberdade de abreviar determinadas coisas e estender outras de acordo com as necessidades do meio com o qual estão trabalhando. O êxito surpreendente da primeira parte de Cem Anos de Solidão diz respeito à capacidade de condensar em oito episódios uma parte (enorme e) significativa da obra do escritor colombiano. E também se deve ao cuidado criativo/artístico na hora de moldar o mundo maravilhoso ambientado quase totalmente na fictícia cidade de Macondo. Os acertos começam na gênese do projeto, quando os herdeiros do autor exigem que a série seja falada em espanhol e filmada na Colômbia com equipe majoritariamente local. Isso contribui de modo determinante para o programa ter uma aura latino-americana que certamente se perderia caso os adquirentes dos direitos autorais tivessem toda a liberdade do mundo. É fundamental que Macondo e seus habitantes façam parte de uma cultura, que tenham lastro ancestral consistente e reconhecível.
Nesses primeiros oito episódios de Cem Anos de Solidão (os restantes da segunda parte serão lançados em 2025, em data ainda a ser confirmada), vemos José Arcadio Buendía (Marco Antonio González Ospina) e Úrsula Iguarán (Susana Morales Cañas) partindo em busca do seu Eldorado, de um lugar distante das maledicências de sua comunidade. Eles querem fundar uma nova sociedade. Depois de um tempo perambulando pela mata na companhia dos amigos de aventura, se estabelecem próximo a um rio e batizam o lugar de Macondo. Enquanto a trama avança, percebemos que a localidade cresce e adquire outras características. No começo é uma vila autogerida por compadres, sem a necessidade de autoridades em qualquer área. Sua expansão leva à intromissão do Estado, à cobiça da Igreja, à mudança que transforma a pequena comunidade numa cidade em que o senso de vizinhança vai se perdendo. Macondo é uma das principais personagens dessa primeira parte, especialmente, vide a forma como ela espelha as particularidades das novas gerações dos Buendía, o mundo mutante no qual está inserida. Na medida em que esse universo particular perde encanto pelo anseio de ser como qualquer outra, José Arcadio (na maturidade vivido por Diego Vásquez) perde a capacidade de conexão com o ambiente, logo se refugiando na loucura. Seu filho Aureliano (Claudio Cataño) vira protagonista.
Diante da ideia de uma adaptação, um dos principais medos dos fãs do livro de Gabriel García Márquez era como seriam representados os momentos de realismo mágico, de que modo eles se integrariam a uma narrativa que atravessa gerações mostrando inúmeros eventos. E, mais uma vez, as decisões criativas da série são absolutamente acertadas, sobretudo a predileção por efeitos práticos em detrimento de um possível uso exagerado de computação gráfica. Os idealizadores do programa conseguem manter o fantástico integrado ao cotidiano, algo que ao livro é essencial. Desse modo, quando Rebeca (Akima) chega carregando o saco de ossos do pai ou depois, quando literalmente estremece a casa ao se masturbar para lidar com a frustração sexual do adiamento do casamento, isso está perfeitamente conectado ao real. O espetacular é percebido como algo mágico, diferente, porém assimilado à “normalidade”. Isso também acontece quando Macondo é acometido por algo raro e seus moradores não conseguem mais dormir – no começo parece ótimo contar com mais horas de sono, mas os efeitos negativos logo vêm. E é bonito como a série valoriza a ação científica do velho sábio Melquíades (Moreno Borja) para acabar com a insônia desvairada de Macondo. Tudo na série é bem cuidado, dos figurinos à direção de arte. O resultado é visualmente bonito e adequado à sensibilidade de quem está lidando com um material a ser reverenciado, seja o livro original ou a cultura da qual ele se serve.
Levando em consideração a dificuldade da tarefa, a primeira parte de Cem Anos de Solidão é um êxito enorme. Camila Brugés, Albatros González, Jose Rivera e Natalia Santa partem de uma compreensão muito consciente da necessidade de imbuir os episódios de aspectos da cultura latino-americana transbordante no livro de Gabriel García Márquez. Desse modo, a textura da imagem, o sotaque dos personagens, a trilha sonora, a bonita valorização da ancestralidade que remete às nossas raízes indígenas (aliás, o realismo mágico também tem essa origem), tudo isso contribui para o sucesso dos oito episódios iniciais. Essa primeira parte começa um pouco antes da fundação de Macondo e termina quando um personagem muito importante morre depois de anos amarrado a uma árvore em desconexão com um mundo afetado pelo Estado e pela Igreja – aliás, o velório aberto é uma das cenas mais bonitas da série, com direito a chuva de flores amarelas transformando as ruas num caminho iluminado. Ao longo dos episódios, Aureliano deixa de ser o filho tímido e se transforma no coronel aguerrido em luta pela bandeira liberal contra os conservadores que ameaçam Macondo. Os idealizadores capturam a complexidade e, às vezes, as contradições dos personagens na jornada que tinha tudo para ser fracassada. É notável a capacidade de enfrentar o impossível e o tornar possível. Transformar uma das obras-primas da literatura latino-americana em série poderia bem ser um dos 12 trabalhos de Hércules.
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