Crítica


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Sinopse

Ucrânia, 1986. Uma explosão seguida de um incêndio na Usina Nuclear de Chernobyl dizima dezenas de pessoas e acaba por se tornar o maior desastre nuclear da história. Enquanto o mundo lamenta o ocorrido, o cientista Valery Legasov, a física Ulana Khomyuk e o vice-presidente do Conselho de Ministros Boris Shcherbina tentam descobrir as causas do acidente.

Crítica

No episódio inicial de Chernobyl, após a confusão que sucede o acidente com o reator quatro de uma usina nuclear, o foco rapidamente se desloca a um drama comum e simbólico, o do bombeiro contaminado no cumprimento do dever. A câmera escrutina seu ingênuo reconhecimento do terreno, o contato com o grafite altamente radioativo e há, logo depois, o vislumbre da concomitante angústia da esposa que ficou em casa. O lastro histórico se impõe nesse momento, o ressignificando, conferindo-lhe altíssima dose de dramaticidade, afinal de contas o sujeito ignora completamente o quanto aquele gesto, que parece cotidiano é, na verdade, fatal. A cônjuge, por sua vez, ainda que preocupada, não faz ideia de que o marido perecerá em horas por conta de uma degradação física acelerada. Desse modo, a minissérie criada por Craig Mazin sinaliza um de seus principais pilares, a tenacidade de homens e mulheres soviéticos, alguns que morreram após heroísmos.

Do ponto de vista formal, é excepcional a utilização do suspense. Todavia, uma vez que as dúvidas dos personagens e as dissimulações são contraditas pela esfera factual e amplamente conhecida, não se trata necessariamente de saber se, mas quando e como as desgraças acontecem. Conscientemente, a atenção é deslocada dos porquês, pois a urgência de lidar com as consequências é maior. Isso é bem reproduzido nos quatro primeiros dos cinco episódios, sendo o último quase de todo dedicado, justamente, ao entendimento do que levou à hecatombe. Valery Legasov (Jared Harris), cujo suicídio nos minutos inaugurais prenuncia sua tragédia pessoal, é o cientista incumbido de guiar tecnicamente os trabalhos de contenção, esclarecendo frequentemente as ocorrências, funcionando como um guia aos burocratas de plantão, responsáveis por decisões estratégicas, e ao espectador. Contudo, sua instrumentalização é valiosa, além de nada banal.

Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård), vice-presidente do Conselho dos Ministros soviéticos, é designado para ser o gestor da enorme crise. A minissérie é engenhosa ao desenhar esse personagem como potencialmente antagonista de Legasov (a priori, seria política versus ciência), mas gradativamente os aproximando, observando um elo essencial à redução de danos. O homem do conhecimento se certifica de entender o cenário, de bolar saídas e formas de reparação. O carreirista, então, viabiliza materialmente as provisões fundamentais, fazendo uma ponte entre os esforços frontais de contingenciamento e o alto comando da União Soviética. Chernobyl causou reações negativas na Rússia, sendo circunstancialmente tachado de propaganda ideológica, mas, na verdade, pode ser entendida como uma crítica ao poder estabelecido sobre hierarquias que, como tal, é autocentrado e inclinado à autoproteção. Evidente que há críticas às particularidades da URSS.

Por outro lado, é patente em Chernobyl a valorização das pessoas comuns, daqueles que voluntariamente se sacrificaram para evitar algo ainda pior. Isso fica claro no frequente enaltecimento dos que, mesmo sabendo do perigo de morte, aceitaram missões vitais, tais como o esvaziamento dos tanques de água lobo abaixo do reator colapsado. É muito sintomática a cena de Legasov tentando persuadir funcionários a assumir essa empreitada praticamente suicida, sem expor-lhes a verdade, e imediatamente sendo interrompido por um operário que lê apropriadamente o panorama e, mesmo assim, demonstra brios e coragem. Aliás, a sequência da incursão pelos corredores encharcados de água radioativa é brilhante, especialmente pela forma como utiliza a característica exígua do espaço, associada à baixa luminosidade e ao som intermitente dos medidores de radioatividade, para deflagrar o tamanho do risco enfrentado. Outro instante de celebração do trabalhador russo se dá na investida dos mineiros na área absolutamente insegura, mas vital ao êxito desejado.

Chernobyl equilibra habilmente a premência das ações e a contextualização político-social. O Estado soviético é tido como disposto a lançar mão de subterfúgios nefastos se isso significar a manutenção de sua posição no jogo geopolítico, nada que o difira dos "inimigos ideológicos", por exemplo. Em meio a entendimentos de dramas bastante particulares, como o do menino encarregado de abater animais como forma de erradicar possíveis focos de contaminação, as responsabilidades são distribuídas. Uma parte aos técnicos, portanto num plano particular – quanto a isso Dyatlov (Paul Ritter) é apontado como o grande vilão por sua arrogância motivada pelo ímpeto de crescimento profissional –, outra às engrenagens governamentais, com verdades inconvenientes sendo encobertas para não expor uma falha no programa nuclear soviético. O clima de distopia que sobrevém ao acidente é condizente com os infortúnios lidos apropriadamente na minissérie. É lamentável apenas o fato da produção ser falada em inglês, não em russo, anacronismo que não chega a sobrepesar.

Outro ponto crucial da tessitura narrativa de Chernobyl é a mescla de gêneros. Do thriller político (maquinações de bastidor) vai-se, às vezes em minutos, ao horror (corpos repletos de pústulas oriundas da contaminação) e à ficção científica (trabalhadores semelhantes a astronautas), passando no caminho pela prevalência do drama. Essa troca de registros não é um exercício vazio de estilo, mas responde à variação de voltagem entre os núcleos. A aproximação de Legasov e Boris, mediada, inclusive, pela atuação corajosa de Ulana Khomyuk (Emily Watson) – figura fictícia criada como uma espécie de amálgama de pessoas determinantes aos diagnósticos e aos planos – magnetiza as atenções, criando uma espécie de núcleo duro. É em boa parte pelos ótimos diálogos entre eles que o espectador é situado, até mesmo nos meandros específicos do funcionamento dos reatores, numa operação orgânica, que não guarda sinais de artificialismo ou de mera exposição. A vulnerabilidade da vida humana é constatada nessa belíssima luta contra um inimigo invisível.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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