Crítica


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Sinopse

Zeca e Vitor são irmãos que precisam lidar com a possível morte dos pais num acidente aéreo, isso enquanto cuidam do irmão caçula, um adolescente com Síndrome de Down, e encaram problemas pessoais que afetam as suas vidas.

Crítica

O criador/roteirista/diretor/ator Rafael Primot opta pelo melodrama para contar as histórias que formam os dez episódios de Chuva Negra. Esse subgênero familiar ao público brasileiro por conta de sua predominância nas telenovelas é caracterizado por personagens e conflitos muito bem definidos e emoções à flor da pele. Grandes figuras do cinema internacional utilizaram o melodrama como um terreno poderoso, elevando-o cinematograficamente ao grau da suma excelência, tais como os alemães Douglas Sirk e Rainer Werner Fassbinder e o espanhol Pedro Almodóvar, para citar apenas três de tantos expoentes. Pois bem, Primot utiliza essa efusividade sentimental em prol de uma trama que encadeia várias existências e afetos interligados a partir de uma tragédia. Nancy (Julia Lemmertz) e Geraldo (Zécarlos Machado) estão casados há várias décadas e prestes a embarcar numa viagem a Israel. Esses preparativos são utilizados para apresentar os demais personagens, os plenamente desenvolvidos depois da notícia de que o voo do casal simplesmente desapareceu antes de chegar ao seu destino – com poucas esperanças de algum sobrevivente. Então, a série alterna a exploração desse presente que precisa ser reconfigurado em meio à dor e flashbacks que mostram (praticamente sem importância) como andava a relação de Nancy e Geraldo antes de planejarem a fatídica viagem.

Mas, Chuva Negra tem severos problemas de conceito e execução. No que diz respeito ao conceito, o principal ponto fraco da série é a quantidade de informações e subtramas utilizadas para supostamente enriquecer os personagens, mas que acabam tornando as situações um tanto quanto banais. Depois de o desaparecimento da aeronave modificar o panorama anterior, quase tudo se concentra na casa dos pretensamente falecidos. Vemos Vitor (Rafael Primot), o primogênito que precisa se mudar para lá, na companhia de sua esposa, Julie (Vanessa Giácomo), e do filho recém-nascido deles, porque a sua agência de viagens faliu. Zeca (Marcos Pitombo) é o irmão do meio, o bon vivant que foge das responsabilidades. Lucas (João Simões) é o caçula que precisa de cuidados especiais porque é portador de Síndrome de Down. Já Micha (Leona Jhovs) é a empregada transexual tratada “como se fosse da família”. A eles ainda se juntam a tia Yara (Denise Del Vecchio), cujo estilo se aproxima “bruxa má”, e os amigos da vizinhança, o policial Rocha (Kiko Pissolato) e o professor de natação Orlando (Dudu de Oliveira), que são casados. Portanto, são muitas pessoas, com demandas complexas para serem mostradas, encaixadas num panorama amplo e minimamente desenvolvidas. E é justamente nessa operação de elaboração que a produção chefiada por Rafael Primot derrapa e se atola.

Ao longo dos episódios, testemunhamos uma enorme quantidade de componentes insuficientemente ou mal resolvidos, fruto da vontade de substanciar os personagens. Cada um tem o seu quinhão. Vitor está às voltas com os abismos profissionais e pessoais; Julie é frustrada no casamento e sente atração pelo cunhado, além de se mutilar para tentar sentir alguma coisa; Zeca deixa de ser um pós-adolescente e assume responsabilidades repentinamente; Lucas tenta se adaptar à nova realidade, mas sempre o enxergamos a partir do olhar dos outros; Micha é utilizada dentro de uma lógica bem questionável, pois é a transexual que serve de descarrego sexual para os filhos de patrões, mantida dentro de uma dinâmica de subserviência pela gratidão decorrente de um acolhimento no passado (e ela tem ainda uma muito mal desenvolvida questão com um pai prestes a ser solto da prisão); Yara chega à casa impondo sua presença, parece ter inveja da irmã desaparecida e protagoniza uma tramoia ao se apaixonar pelo policial homossexual; Rocha e Orlando preenchem a cota da (sempre bem-vinda, claro) discussão sobre a homofobia, mas também recaem sobre os seus ombros o racismo e ainda um apontamento absolutamente gratuito sobre os desafios de uma pessoa convivendo com HIV. E, além disso, as turbulências matrimoniais de Nancy e Geraldo são engatilhadas depois de um passo consensual.

São realmente muitos apontamentos para organizar em tão pouco tempo – os 10 episódios têm cerca de 25 minutos cada. Portanto, nem bem a ausência dos pais modificou a vida dos demais personagens e eles precisam lidar com tudo isso que os atravessa individualmente. Tanto que o desaparecimento da aeronave não é tratado exatamente como uma nuvem sombria pairando sobre a casa, sobretudo porque Rafael Primot e sua equipe de roteiristas se impõem o desafio de lidar com diversas outras coisas ao mesmo tempo. Por exemplo, o caso extraconjugal entre Julie e Zeca, que nunca chega a ter a abrangência de dele se espera, servindo simplesmente para criar uma dinâmica fugaz de culpas e segredos. Também depõe contra o resultado de Chuva Negra a inconsistência dos personagens. Numa hora eles falam e representam uma coisa. Quando não estão no protagonismo, se comportam de modo a quase descaracteriza-los. Yara, por exemplo, é capaz de hostilizar o sobrinho com Síndrome de Down num episódio e no próximo (quando suas questões não estão em evidência) se comportar de maneira praticamente antagônica. Além disso, é evidente que Primot deseja trazer à tona uma discussão sobre diversidade, mas o faz de um jeito pouco orgânico e eficaz. Micha, por exemplo, tem seus instantes de demonstração de subjetividade, é uma personagem forte e interessante, mas continua circunscrita numa lógica social em que é “necessária” para essa família a quem “deve”.

Entrando ainda mais nesses problemas de execução, Rafael Primot não prevê tempo para que as tantas situações e os vários ganhem densidade e contornos. Numa cena alguém fica sabendo que outrem se mutila, acontece um afago afetuoso, um instante de desconforto e nada mais. Imediatamente depois, outro tópico ganha os holofotes e deixa o anterior praticamente obscurecido. Em determinado episódio, Micha peita a mãe e diz que vai enviar ao pai o dinheiro que ele reivindica para poder sobreviver na cadeia. Adiante, ela fica praticamente ofendida quando descobre que a mãe (antes a relutante) pagou a fiança do pai. E o que isso acrescenta à personagem? Apenas um background de sofrimento que “justifica” a gratidão sentida pela família pequeno-burguesa, cujos problemas financeiros são sanados com a venda de brownies (alguns com maconha na receita). Falta também um ajuste fino na direção, não somente no que tange a essa dispersão que torna as gravidades banais e as importâncias descartáveis. O cúmulo é o assassinato passional que remonta a uma abordagem ultrapassada do amor LGBTQIAPN+ pelo viés da tragédia, tanto que a revelação final soterra quase totalmente os efeitos desse gesto criminoso. No fim das contas, problemas e diferenças praticamente insolúveis tem sua resolução ao menos encaminhada depois do “milagre” que parece fazer a dor desaparecer imediatamente.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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