Crítica


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Sinopse

Décadas de um relacionamento instável e sensual entre o carismático/ambicioso Hawk e o devoto e idealista Tim. Os dois se apaixonam no auge da política de criminalização aos homossexuais nos Estados Unidos dos anos 1950.

Crítica

A viagem, aqui, é mais figurada do que literal. Hawk e Tim não estão fazendo um passeio de um destino a outro, como colegas de trabalho ou turistas despreocupados. Pelo contrário, se estão num mesmo “barco”, isso se dá mais pelo que são, e menos por onde estão. É algo que diz respeito a algo interno, daquele tecido que faz deles os homens que são, e a jornada que ambos, cada um a seu modo, deverá percorrer para como tais se apresentarem a si e aos demais ao redor. Este, portanto, é o que almejam os personagens no âmago dos acontecimentos de Companheiros de Viagem, minissérie em oito episódios que adapta para a telinha o livro homônimo de Thomas Mallon e se ocupa em acompanhar o relacionamento não apenas destes dois personagens, mas daqueles que deles dependem e se atraem, dos que se afastam e os repudiam. Os sentimentos são conflituosos e contraditórios. Uns os querem como tais, outros torcem pela máscara que ostentam. E neste jogo de disfarces e verdades se sobressai uma história de amor e abandono, tão dolorosa e feliz quanto a de muitos que enfrentaram condições similares não na ficção, mas na vida real. Uma proximidade que conforta, assim como perturba.

Ron Nyswaner, showrunner do programa, não é novato em relação aos assuntos que Companheiros de Viagem aborda. Indicado ao Oscar pelo roteiro de Filadélfia (1993), concorreu ao Emmy pelo seriado Homeland (2015-2018), e estes dois destaques de sua filmografia são suficientes para antecipar muito do que se encontra por aqui. De um lado, está a primeira grande produção com temática gay desenvolvida por um dos principais estúdios de Hollywood, dirigida por um cineasta reconhecido (Jonathan Demme) e estrelada por nomes de destaque (Denzel Washington e Tom Hanks, que ganhou o Oscar por esta performance). Do outro está um thriller de investigação e espionagem, sobre agentes secretos e seus disfarces, mentiras e dissimulações. Hawk e Tim são um pouco disso, e mais, felizmente. São homens que transam com outros homens, mas pelos quais também se apaixonam, e mentem, disfarçam e enganam. Afinal, a história deles começa ainda nos anos 1950, em uma época em que tal condição era motivo de perseguição e até mesmo encarceramento nos Estados Unidos, lugar onde a ação se passa. Por isso, estão juntos nessa caminhada, e se decidem se entregar um ao outro, também precisam negar estes desejos e vontades diante dos testemunhos dos demais.

Ou quase todos. Pois não são únicos nestes anseios e obrigações. E o enredo ganha com a entrada de outros personagens. O dilema vivido pelo casal formado por Marcus e Frankie acrescenta ao drama da homofobia outro preconceito fortemente enraizado na sociedade: o racismo. Se a questão de pele é a mais visível, enfrentam ainda outro debate: a feminilidade de um e a ausência de trejeitos em outro. Assim como Identidade (2021) discutia a possibilidade de se passar por aquilo que não se é e as consequências de se esconder por trás de uma aparência entre mulheres negras, Marcus e Frankie trazem esse debate para um outro contexto: o primeiro tem trabalho público e circula pelas principais rodas da cidade justamente por ninguém desconfiar de sua real orientação. Já o outro, por se mostrar sem recursos de segurança, acaba relegado a uma existência às sombras, se ocupando com funções alternativas e a todo instante temendo ser pego, descoberto, acusado. A aceitação entre eles, como se vê, é mais profunda.

Mas não se tem apenas um mergulho no universo queer. A discussão é ampla, pois estes, como se pode imaginar, não existem à parte dos demais. Hawk traz consigo a questão da passabilidade, mas num outro nível: acaba se casando e tendo filhos, vendendo ao mundo que o observa uma imagem de aparente normalidade, como se fizesse apenas o que dele se espera. A transgressão, a válvula de escape ou vazão a quem ele, de fato, é, só se dá às escondidas. Ou mais tarde, quando não há o que perder. É por isso que a presença da esposa se mostra divisora de águas nesse percurso. Afinal, é o olhar de quem está de fora, a figura que permite ampliar o debate e exercer uma empatia que talvez escape a quem desta realidade não faça parte. Sua participação, ainda que não central, se mostra componente importante visto a necessidade dos realizadores em irem além do nicho e fazer desta obra um relato de aceitação e anseios, independente da cor e dos desejos de quem se encontra na audiência.

Nesse ponto, importante falar dos desempenhos superlativos dos protagonistas. Por mais que o elenco de apoio seja coeso – Jelani Alladin (tick, tick... BOOM!, 2021) e Noah J. Ricketts (Deuses Americanos, 2021), como Marcus e Frankie, são os óbvios destaques, até pelo muito que se espera de ambos, mas Linus Roache (Meu Policial, 2022), como o senador Smith e, principalmente, Allison Williams, como filha deste e esposa de Hawk, carregam grande parte dos reflexos vividos pelos personagens centrais – muito se perderia caso a dupla à frente dos principais acontecimentos não estivesse à altura das expectativas. Felizmente, tanto Matt Bomer, quanto Jonathan Bailey, se mostram mais do que aptos aos desafios propostos. O primeiro, pela facilidade com que transita entre uma máscara e outra e o lento abandono que percorre ao longo dos capítulos em busca do seu eu verdadeiro, enquanto que o segundo empresta ao todo uma jovialidade – e, com ela, impetuosidade, insegurança e espírito aventureiro – que condiz com o perfil desta figura fadada a um destino trágico, seja pela conjuntura da época, como também por ser o que mais se joga a um amor desde o início reprovado, se não pelos próprios, também por todos os que os circundam. Superar essas barreiras responde por muito do esforço que lhes é exigido.

Assim, sem evitar uma fórmula que por anos foi a única a ser perseguida por produções do gênero – gays e seus finais infelizes – ao mesmo tempo em que injeta esperança frente a um futuro que ainda está sendo desenhado, não só pela unicidade destes tipos, mas também pelo longo percurso etário percorrido pela narrativa, Companheiros de Viagem vai além da trama de nicho, falando diretamente com o público homossexual, mas, felizmente, não apenas com ele. Eis, enfim, um retrato de uma época que muitos podem acreditar ter sido superada, mas da qual ainda se faz presente em diversas partes desse mundo contemporâneo de hoje. E, portanto, seu discurso se mostra cada vez mais relevante e urgente, não só pelo que aponta no ontem, mas também no que diz respeito aos caminhos de amanhã. A história, como se sabe, é uma mera questão de aprendizado e repetição. Que se vá mais por um e menos por outro pode ser, muitas vezes, o máximo pelo que se pode torcer – e esperar.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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